A rotina de Ansa é tão modesta quanto suas posses. Durante o dia, ela organiza prateleiras num mercado em Helsinque, capital da Finlândia. À noite, volta para seu minúsculo apartamento, aquece alguma refeição vencida e liga o rádio. Dificilmente o aparelho lhe traz algum consolo: as notícias da guerra na Ucrânia dominam a programação. O noticiário é o único ponto de ligação entre os dias atuais e o filme Folhas de Outono (Kuolleet Lehdet; Finlândia/Alemanha, 2023), já em cartaz no país. No mundo peculiar do diretor finlandês Aki Kaurismäki, as épocas são indefinidas, as roupas e os cenários antiquados não indicam tendências da moda e os smartphones são inexistentes — mas eis que, do nada, um calendário na parede surpreende ao estampar o ano de 2024.
O tempo cronológico e a bagagem que ele traz — como uma visão política do momento ou a interferência das redes sociais — são irrelevantes para o cineasta: interessam a Kaurismäki os lances imutáveis das relações humanas diretas, do olho no olho, especialmente entre aqueles que enfrentam escassez financeira. Elas estão imersas numa realidade dura, mas na qual sobressai um otimismo quase milagroso. “As pessoas tentam sobreviver ao mundo onde elas nasceram. Quando toda esperança se foi, não há razão para pessimismo”, disse ele certa vez.
The Films of Aki Kaurismäki: Ludic Engagements
Eleito melhor filme do júri no Festival de Cannes deste ano, Folhas de Outono é uma comédia romântica sui generis. A vida pacata de Ansa (Alma Pöysti), mulher madura e solitária, ganha outro ritmo quando ela conhece Holappa (Jussi Vatanen), homem gentil, trabalhador — mas alcoólatra. No primeiro encontro, ele a leva a um cinema. Na saída, Ansa lhe dá um papelzinho com seu telefone. Ele perde a anotação. Holappa, então, vai diariamente à porta do cinema com a esperança de vê-la passar. Entre encontros e desencontros, ambos lutam para pagar as contas, pulando entre trabalhos braçais e sem garantias ou benefícios.
The Cinema of Aki Kaurismäki: Contrarian Stories
Antes de se embrenhar no cinema, o próprio diretor — que também é roteirista, produtor e ator — experimentou empregos subalternos, como ajudante de cozinha e pedreiro. Dessa experiência nasceu a trilogia Proletariado, à qual Folhas de Outono se soma como um quarto integrante simbólico — a série é formada originalmente por Sombras no Paraíso (1986), Ariel (1988) e A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos (1990). Em comum, pessoas da base da sociedade, sem acesso ou poder para mudar problemas macro, como crises econômicas e políticas, se voltam para o micro: é na relação com o próximo que elas encontram, afinal, a luz no fim do túnel.
Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870
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