Entre as memórias que preserva do pai, o cineasta Guel Arraes ressalta uma apoteótica: “Lembro de olhar pela janela de casa, quando ele virou governador de Pernambuco, e ver milhares de trabalhadores gritando o nome dele. Imagina isso na cabeça de um menino de 10 anos?”. Guel é o quarto de oito filhos de Miguel Arraes (1916-2005), proeminente político pernambucano que não só arrastou multidões no passado como, ainda hoje, paira sobre o estado, representado por herdeiros que entraram para a vida pública (e até brigam entre si nas urnas). Na contramão de boa parte da família, em um desafio de contornos freudianos, Guel saiu da sombra do patriarca. “Queria fazer algo que me causasse a mesma empolgação que eu via nele. Encontrei isso na arte — que também é uma expressão política”, disse o cineasta em entrevista a VEJA.
Hoje aos 68 anos, Guel é peça incontornável da história da TV e do cinema nacionais — posição atingida graças ao domínio de uma técnica engenhosa: da sátira ao drama, ele retrata com primor as delícias e as agruras de ser um brasileiro. Mais notável é o modo como faz isso sem cair nas armadilhas da polarização — nem pender para a nebulosa área dos isentões. Em breve, essa habilidade passará por um teste de fogo: ao lado de seu parceiro criativo, o roteirista Jorge Furtado, Guel vai lançar uma adaptação atual, e com alto teor de crítica social, de Grande Sertão: Veredas. A obra de Guimarães Rosa vai se passar numa favela carioca em guerra com a polícia. E o memorável Diadorim será não binário, como o próprio livro sugeria antes de o termo existir.
O filme, que posteriormente será uma minissérie na Globo (ambos sem data de estreia), atesta a resiliência do livro de 1956 ao tempo e a profundidade dos problemas enraizados no Brasil. Para o cineasta, a obra de Guimarães já continha a tríade que originou o gênero nacional conhecido como favela movie: violência urbana, corrupção e influência religiosa. “O problema sociopolítico virou uma questão artística. Mas se nem a direita nem a esquerda sabem o que fazer com a violência brasileira, querem que a gente resolva?”, pondera.
O diretor, contudo, não se resigna ao papel de mero observador. Para ele, a análise ética do problema vem acompanhada de empatia. O melhor exemplo é a popular adaptação de O Auto da Compadecida, de 2000. Na trama de Ariano Suassuna, a comédia é o recurso que cria o laço do público com as malandragens de dois nordestinos pobres. Em paralelo, a hipocrisia de membros da Igreja e da dita família tradicional corre solta. Por fim, Fernanda Montenegro no figurino de Nossa Senhora apazigua os ânimos no Além narrando a nada fácil vida dos pecadores da cidade.
A abordagem se repete em Vai Dar Nada, o primeiro filme da dupla Guel e Furtado para o streaming, lançado em maio pela Paramount+. A trama cômica se passa em um desmanche no Rio, epicentro de uma treta entre traficantes e policiais causada por um jovem malandro que só queria uma boa moto para conquistar uma garota.
A estreia do pernambucano no streaming reflete as mudanças recentes no audiovisual. Guel foi um dos criadores do humorístico TV Pirata, nos anos 1980 pós-ditadura. Na Globo, estabeleceu o padrão das séries — de A Grande Família a O Bem Amado —, adicionando novo tempero à rotina noveleira do país. Em 2018, deixou o comando das séries da Globo para atuar de forma independente. Sua renovação agora é aprofundada pelas plataformas, que impulsionaram as produções nacionais com investimento estrangeiro no momento em que a “guerra cultural” bolsonarista minou os incentivos públicos. “O cinema brasileiro é lindo e a TV é forte, só nosso governo não vê”, critica ele. Eis um diretor sem medo do fogo cruzado.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795
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