Em um comunicado televisionado, o presidente dos Estados Unidos garante aos ditos “verdadeiros americanos” que o Exército está perto da vitória contra os rebeldes separatistas da Flórida e da coalizão formada entre a Califórnia e o Texas — trio poderoso de estados que se opõem ao mandatário. De um quarto de hotel em Nova York, a repórter fotográfica Lee (Kirsten Dunst) assiste ao pronunciamento indiferente, enquanto avista ao longe, de sua janela, explosões que apontam para uma estranha realidade: em um país em guerra, aprende-se a conviver com os rastros de destruição e violência. A cena desoladora abre o filme Guerra Civil (Civil War, Estados Unidos/Reino Unido, 2024), do diretor Alex Garland, que estreia nos cinemas na quinta-feira, 18, e traz o brasileiro Wagner Moura no grupo de jornalistas que protagoniza a trama.
Escritor e cineasta com um quê de pensador, Garland se impôs como uma relevante mente criativa em Hollywood ao usar o entretenimento como alerta político e social. No acachapante filme Ex_Machina: Instinto Artificial (2014), ele expôs o perigo da inteligência artificial por meio de uma androide manipuladora. Na série Devs (2020), sobre computação quântica, criticou o poder ilimitado dos bilionários da tecnologia. Agora, Garland troca a ficção científica pela distopia e imagina o pior dos cenários: e se, com a crescente tensão e polarização política alimentadas por líderes de falas totalitárias, cidadãos se voltassem uns contra os outros em uma feroz guerra civil? O resultado proposto pelo filme é estarrecedor.
O conto da aia – Margaret Atwood
Nascido em Londres, Garland afirmou que a trama poderia se passar em diversos países democráticos dos dias de hoje — a começar pelo dele, a Inglaterra. Mas a escolha dos Estados Unidos como cenário é calculada. Colocar em xeque a democracia e a paz da nação mais poderosa do mundo é também imaginar um planeta assolado por crises morais e econômicas. Trata-se ainda de uma janela para o passado: no século XIX, o conflito entre o Norte e o Sul americanos, motivado pela discordância sobre o uso de trabalho escravo negro, deixou 1,5 milhão de mortos, entre militares e civis.
Watchmen: Edição Definitiva – Alan Moore e Dave Gibbons
Ao esticar a realidade ao máximo, próximo do ponto de arrebentar, Guerra Civil reforça um time de produções notáveis que se arriscam a retratar uma versão futura sombria da sociedade americana — a qual serve de espelho para o resto do mundo. É o caso da série The Handmaid’s Tale, baseada na obra de Margaret Atwood, na qual um governo cristão fundamentalista dá um golpe de Estado, escraviza mulheres férteis e reprime com pena de morte opositores e “pecadores”, de homossexuais a médicos que tenham realizado aborto. Na mesma toada, a minissérie Watchmen (2019) imaginou um país onde os negros foram indenizados por uma lei de reparação, o que atiça neonazistas.
#VidasNegrasImportam e libertação negra – Keeanga-Yamahtta Taylor
Ao contrário desses títulos, Guerra Civil se abstém de entregar de bandeja a razão inicial do conflito ou de escolher um lado de forma óbvia. A improvável aliança entre Califórnia e Texas, estados opostos na vida real, é exemplo disso: o primeiro é democrata e progressista; o outro, republicano e conservador. Mesmo delineando um ambiente neutro, Guerra Civil traz óbvias alfinetadas ao ex-presidente Donald Trump — em vias de disputar a eleição deste ano com Joe Biden. Garland escreveu o filme em 2020, quando a polícia americana dispersou de forma violenta manifestantes antirracistas do Black Lives Matter ao redor da Casa Branca, com o estranho intuito de abrir caminho para Trump caminhar até uma igreja na região, onde ele tirou uma foto segurando uma Bíblia — ato tido como simbólico sobre o lado dele naquele momento. Se já era controverso, na atual campanha o ex-presidente vem elevando o tom de seu discurso contra os direitos individuais, como o aborto e a transição de gênero — e chegou a ameaçar instituições que não o apoiam totalmente, entre elas o respeitado FBI.
Não à toa, em Guerra Civil, a agência federal é extinta pelo presidente fictício, junto com a Constituição. O filme é narrado pela ótica de jornalistas que fazem uma viagem de Nova York até a Casa Branca em busca de uma entrevista com o presidente. Lee é uma experiente fotógrafa de guerra, que aprendeu a não se envolver com as tragédias que registra. Joel, personagem de Wagner Moura, é um viciado na adrenalina da caça à notícia, enquanto a novata Jessie (Cailee Spaeny) representa o olhar de quem ainda não está calejado diante da barbárie. No caminho, eles encontram desde pessoas que, em lugares isolados, fingem não haver uma guerra, até extremistas que se valem da terra de ninguém para agir como querem. Apesar de ser claramente o catalisador da batalha, o presidente e seus seguidores não são vilões sozinhos. Ambos os lados demonstram sede de sangue — e o propalado sonho americano vira, assim, um tenebroso pesadelo.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888