Novo ‘O Exorcista’ espanta com terror reacionário e moralista
Lançado 50 anos após o original, 'O Devoto' esbanja fundamentalismo religioso que assustaria o pai da franquia, William Friedkin
Cinquenta anos depois do Exorcista original, a veterana Ellen Burstyn, de 90 anos, está novamente em frente a uma cama, olhando para uma pré-adolescente raivosa que vocifera blasfêmias com o timbre de um britânico fumante. Muito difere, no entanto: em vez de confusa, sua personagem agora é católica e declama rezas; efeitos de luz escurecem e enfeiam a cena; o diálogo é pouco lacerante e o brilhantismo de William Friedkin — mestre da Nova Hollywood — está desaparecido. O olhar de hoje é de David Gordon Green, cineasta por trás da última trilogia Halloween, alguns filmes independentes e um punhado de comédias genéricas; já o filme é O Exorcista: O Devoto, um fiasco sem imaginação que chega para assombrar as salas de cinema brasileiras nesta quinta-feira, 12 de outubro.
Nele, a personagem retorna para acudir o pai solteiro Victor Fielding (Leslie Odom Jr.), cuja filha acaba possuída após tentar contatar a mãe morta com uma amiga, igualmente corrompida pelo diabo. Desesperadas, ambas as famílias se unem para tentar salvar as garotas, com a ajuda da enfermeira e ex-noviça Ann (Ann Dowd), um padre católico, um pastor evangélico e uma curandeira africana. Agnóstico, o procedimento evidencia a miopia de Green, que tenta ser mais inclusivo que o longa original e dá vazão para falas truncadas sobre conceitos da justiça social contemporânea, atingindo, porém, o efeito oposto. Tentando reinventar o que já era reinvenção, o terror holywoodiano de hoje cai numa armadilha capciosa e se mostra tão reacionário — se não mais — quanto histórias cautelares dos anos 1950.
Sem criatividade, O Devoto funciona como uma parábola para assustar meninas desobedientes, moradores de rua e mulheres que ousam não desejar a gravidez. Isso porque Green não consegue pensar sobre a culpa católica como autor, dispensando nuances ou qualquer exploração na mise-en-scéne. O filme não compreende a subjetividade, e então recorre a dogmas: os personagens sucumbem ao poder demoníaco por pecados claramente delimitados, como aborto e ganância, e devem então se salvar por meio de salmos e clichês. Incessante, o fundamentalismo do roteiro o aproxima a terríveis longas panfletários como Deus Não Está Morto, enquanto as decisões referentes à personagem de Burstyn evidenciam uma satisfação iconoclasta dos envolvidos, que enxergam honra ao desconstruir símbolos de outrora sem idealizar nenhuma construção de mérito próprio.
O Exorcista, porém, não é uma franquia nascida dos interesses supérfluos de produtores americanos. Seu primeiro diretor, Friedkin, pertence aos tempos de Revolução Sexual e do Movimento Hippie, que abasteceram a indústria cultural americana com jovens ousados — de Martin Scorsese a Miloš Forman. No original, esta verve é reconhecível, por exemplo, no cenário urbano e no caráter de Chris (Burstyn), recém divorciada que equilibra as responsabilidades de mãe com a filmagem de um longa político em Washington — substituídos pelo sul dos Estados Unidos e famílias tradicionais em O Devoto.
Os filmes em si, por sua vez, tampouco são terra de ninguém — muito pelo contrário. Diferentemente de histórias regurgitadas como Sexta-Feira 13, três das quatro sequências de O Exorcista são pensadas por célebres autores: John Boorman, Paul Schrader e até William Peter Blatty, escritor do livro que deu origem ao longa. Dispensar tal histórico rico em prol de crenças arcaicas e cacoetes dignos dos piores filmes da saga Sobrenatural é uma das decisões mais surpreendentemente estúpidas da história do cinema.
Até então, essa parece ser a maior tendência do terror de estúdio. O que já foi um nicho ideal para os delírios mais ambiciosos e não convencionais de Hollywood, virou uma fábrica de conteúdos repetitivos idealizados para espremer dólares o suficiente de um público que busca levar alguns sustos com amigos. Basta olhar para a decepcionante leva de 2023, marcada pelos também conservadores Jogos Mortais X e A Morte do Demônio: A Ascensão, além de múltiplas histórias pautadas nos mesmos arquétipos familiares, como Boogeyman: Seu Medo é Real, Batem À Porta e Sobrenatural: A Porta Vermelha.
Ainda assim — de joelhos, rezando —, o filme implora ao seu espectador que acredite no texto, na santidade da família, na existência de bem e mal e no charme do interior americano. Talvez sua sorte fosse maior caso seu título não evocasse à história do gênero que execra, ou caso qualquer um dos atores fizesse um trabalho mais que caricato, mas é difícil acreditar que o longa já foi algo que não tragédia anunciada. Entre todos os motivos de vergonha, Gordon Green pode ao menos se orgulhar de uma láurea: O Exorcista será para sempre lembrado como o melhor filme de terror, e O Devoto é forte candidato ao posto de pior.