O chocante (e necessário) olhar de Sofia Coppola para Elvis em ‘Priscilla’
A cineasta retrata o outro lado do casamento do astro — uma relação que, sob a ótica da esposa, nada se parecia com um conto de fadas
“Bonita e boba” — assim Priscilla descreve como era quando conheceu Elvis Presley, em 1959. Ela tinha 14 anos e o astro do rock, 24. Durante o flerte, ele quis discrição. Priscilla não contou a ninguém que havia conhecido o ídolo, nunca compartilhou com uma amiga como fora seu primeiro beijo, muito menos como era a vida em Graceland, a mansão de Elvis, para onde se mudou aos 17. Isolada da família e sem laços de amizade, ela vivia em função dos caprichos do namorado. O silêncio chegou ao fim em 1985, oito anos após a morte do cantor, com a autobiografia Elvis e Eu — relato vertido em uma controversa série de mesmo nome, em 1988, que reforçava a ilusão de um romance trágico, mas invejável. No filme Priscilla (Estados Unidos, 2023), que estreia na quinta-feira 21 nos cinemas, a diretora Sofia Coppola segue caminho completamente oposto — e bem mais realista.
A cineasta era também uma adolescente quando leu o livro, e a identificação foi imediata: filha do aclamado Francis Ford Coppola, Sofia conhecia bem a solidão e a pressão sofridas por mulheres que orbitam em torno de um astro de primeira grandeza. Priscilla e ela amadureceram sob o escrutínio público e batalharam para ter autonomia — mesmo assim, sabem que serão eternamente indissociáveis dos homens com quem compartilham um sobrenome. A conexão fez com que a ex-esposa do cantor apoiasse a produção, apesar de empecilhos como a oposição ferrenha de Lisa Marie, morta no começo deste ano, única filha do casal, que vetou o uso das músicas do pai na trilha e acusou Sofia de vilanizá-lo. Já Priscilla, hoje aos 78 anos, se sentiu enfim compreendida: “Você fez bem a lição de casa”, disse ela à cineasta, após a estreia do filme.
Uma entre as ínfimas sete mulheres já indicadas ao Oscar de direção, Sofia criou uma marca própria: suas produções são sensíveis e sutis, e narradas da perspectiva de jovens ingênuas e sem voz. Até seu retrato de Maria Antonieta, a malfadada rainha da França que morreu na guilhotina, mostrava quão impotente ela era no palácio, presa em gaiola de ouro. Experiência similar à de Priscilla: a garota conheceu Elvis numa festa na então Alemanha Ocidental, onde vivia com a mãe e o padrasto militar, e ele servia o Exército. O cantor conquistou a confiança da família e a levou para morar nos Estados Unidos.
Sofia Coppola: The Politics of Visual Pleasure
Nos raros momentos em que estava presente, entre uma turnê e outra, o roqueiro ia do amante carinhoso ao namorado abusivo. Os encontros esporádicos ainda eram afetados pelo vício: ele se dopava com drogas analgésicas, e as apresentou à menina. Mesmo ausente, Elvis ditava como Priscilla deveria agir, qual a cor adequada de seu cabelo e, acima de tudo, como deveria guardar a virgindade para ele — os dois só tiveram uma relação sexual de fato após o casamento, em 1967, quando ela tinha 21. Longe de Graceland, o astro mantinha casos públicos. Quando ela reclamava das traições, ameaçava devolvê-la aos pais. Elvis sempre voltava atrás, pedia perdão, e o ciclo se repetia — até o dia em que a jovem, aos 27, pegou a filha e partiu para não mais voltar.
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Em entrevista a VEJA, Cailee Spaeny, que vive Priscilla, lembra de um pedido especial feito pela biografada: “Ela me disse: ‘Deixe claro que existia amor entre nós’”. A atriz cumpriu a missão: como em todo casal, a relação tinha altos e baixos — mas esses foram acentuados pela fama explosiva de Elvis. O ator Jacob Elordi encarou também uma dura missão, a de dar vida ao músico após a atuação brilhante de Austin Butler no musical Elvis (2022), de Baz Luhrmann. Sofia pensou que o longa do colega ajudaria a tirar o seu do papel. Não foi bem assim. A diretora sofreu para angariar o orçamento de 20 milhões de dólares — Elvis foi feito com 85 milhões. A inevitável comparação entre os dois filmes é nublada por certa miopia: não se trata de eleger qual é melhor, mas de constatar que eles retratam lados distintos da mesma relação. Nas mãos de Luhrmann, Elvis foi brilhante, acelerado e sofrido. Já Priscilla se encaixou na sobriedade melancólica de Sofia, que expôs a força misteriosa das mulheres que se livram de uma relação tóxica. A plebeia amou o rei — até o dia em que decidiu amar mais a si própria.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872
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