O conselho que Steven Spielberg deu ao novo diretor de ‘A Cor Púrpura’
Blitz Bazawule fala a VEJA sobre os desafios e as alegrias de realizar a adaptação musical do clássico, sucesso da literatura e do cinema nos anos 1980
Em 1982, a escritora Alice Walker lançou o livro A Cor Púrpura inspirada em relatos de familiares sobre a vida das mulheres afro-americanas no início do século XX, nos Estados Unidos. A obra ganhou um Pulitzer e, em 1985, foi adaptada no cinema dirigida por Steven Spielberg – e indicada em onze categorias do Oscar. A fonte se revelou inesgotável quando, em 2005, a trama pautou um premiado espetáculo musical na Broadway – agora vertido para o cinema sob a direção do ganense Blitz Bazawule. Com Fantasia Barrino, Taraji P. Henson e Danielle Brooks (ela indicada ao Oscar pelo papel), o filme realça o lado esperançoso e alegre das pessoas que, apesar da opressão e dos traumas, buscam saídas para uma vida digna. Em passagem por São Paulo, o diretor conversou com a reportagem de VEJA sobre os desafios de adaptar uma história tão famosa e a importância da trama para os dias de hoje.
Como foi seu primeiro contato com A Cor Púrpura? Foi com o livro, enquanto estava na faculdade, e foi a primeira vez que li algo sobre uma mulher negra do Sul rural americano que tinha uma perspectiva internacional. Ela sabia que a irmã dela estava na África, e eu, com 18 anos, havia imigrado recentemente de Gana para os Estados Unidos, então me identifiquei bastante em termos do retrato do continente e das complexidades dele. Adorei o livro e vi o filme do Spielberg logo depois.
Spielberg dirigiu uma primeira adaptação aclamada e agora atua como produtor do seu filme. Ele lhe deu algum conselho? Sim, ele disse: “esse é o seu filme agora, Blitz, faça com que seja seu”. Tínhamos que achar um motivo para fazer este filme, ele não podia ser uma cópia do anterior, tinha que ter uma voz própria. Foi difícil descobrir como poderíamos contribuir com algo novo, mas quando percebemos a intenção de Alice Walker em relação à imaginação, sendo que as primeiras palavras de Celie no livro são “Querido, Deus”, eu entendi que alguém que escreve cartas para Deus tinha imaginação e esperança, e enxergamos ali nossa história. É um erro assumir que pessoas lidando com traumas são dóceis, impassíveis, esperando para serem salvas. Não acredito nisso. Gente como a Celie está em busca de uma saída, elas não são passivas.
É uma história sobre mulheres negras muito fortes. Como enxerga esse tipo de personagem a partir da sua experiência? Bem, as mulheres da minha vida, minha mãe, minha avó, são super-heroínas da vida real. São as mulheres que mantêm famílias unidas – embora os homens gostem da ideia de que são eles que estão no controle, todos sabem que, na verdade, são elas que estão, e sempre vão estar, pelo menos em Gana. Quer sejam reconhecidas por isso, ou não. Fazer esse filme foi fácil porque ele se baseia em mulheres brilhantes, incríveis, com a capacidade de criar algo do nada. Às vezes o armário está vazio, mas antes que você perceba, tem comida na mesa. Como isso acontece? Só elas sabem. Para mim, foi uma homenagem a essas mulheres tão fortes da minha vida.
A Cor Púrpura ficou marcado como um drama triste, o que pode afastar novos espectadores. O que diria para essas pessoas? Primeiramente, diria que essa fama é um equívoco. A vida negra na América é uma oscilação entre alegria e dor. Qualquer um que esteja passando apenas pela dor nunca poderia gerar manifestações artísticas tão bonitas, que conhecemos e amamos, como o jazz, o blues, o hip hop, o R&B. Não importa a dor que os afro-americanos enfrentem neste país, sempre estivemos em uma jornada para tentar encontrar alegria, então foi esse meu foco ao fazer o filme. A Cor Púrpura fala sobre como somos capazes de navegar entre alegria e sofrimento porque, no fim das contas, essa é uma história universal. Sempre lidamos com idas e vindas entre amor e decepção, alegria e dor; a vida é assim. Acredito que é isso que as pessoas vão apreciar nessa versão da história.
Há muitas críticas sobre o modo discreto como Spielberg representou as questões LGBTQI+ da história, já que Celie se apaixona pela amante do marido. Como foi expandir na tela esse lado da personagem? Steven fez um filme nos anos 1980 adaptado para aquela época. Questões queer não eram discutidas como hoje, logo tivemos mais liberdade. Era importante, para mim, que Celie pudesse atuar na escolha de quem ela amava, escolher como ela queria ser amada, entende? Talvez daqui a quarenta anos uma diretora negra e gay faça outra versão ainda mais pessoal que a minha.
Os dois filmes são incomparáveis, mas ao mesmo tempo, é difícil não compará-los. Isso o preocupa? Não, porque escolhemos a nossa fronteira. Eu vivo de acordo com uma citação de Toni Morrison, até a escrevi no meu escritório durante a produção. Ela diz: “fiquei na fronteira, fiquei no limite, reivindiquei-a como centro, e deixei o resto do mundo se mover para onde você está”. E isso é muito importante para um filme assim. Você tem que escolher sua fronteira, reivindicá-la como seu centro, e forçar as pessoas a se achegarem, pois no minuto em que você se afasta do seu centro, então você chega na colina de outra pessoa. E eu tenho uma teoria sobre isso: você morre na colina de outra pessoa, mas prospera na sua. As pessoas vão perceber que esse filme não é igual a nenhum outro e, certamente, não é como a primeira versão de A Cor Púrpura. Ele tem uma voz própria.