O segredo por trás do filme da maior rival de Fernanda Torres no Oscar
Pouco se fala sobre a influência decisiva e escancarada que faz de 'A Substância', estrelado por Demi Moore, um libelo potente

Última grande premiação antes do veredito final do Oscar, o SAG Awards — distinção com a marca do respeitável sindicato dos atores americanos — foi realizado no último domingo, 23, e não deu outra: conforme se temia, Demi Moore levou a melhor na categoria de atriz, reforçando seu cacife na disputa com a brasileira Fernanda Torres pela estatueta máxima do cinema, cuja vencedora será enfim conhecida na cerimônia do próximo domingo, 2, em Los Angeles. A briga é boa, pois as duas estrelas obviamente estão ancoradas em filmes (e atuações) de peso. Mas, no caso de A Substância, que conferiu prestígio inédito a Demi na maturidade, um detalhe que tem sido mencionado somente aqui e ali merece ser mais valorizado — pois se trata, sem dúvida, do fator que faz do filme o potente libelo que é contra a ditadura da beleza e do etarismo em Hollywood: algo que se pode chamar de “efeito Cronenberg”.
Na verdade, desde a estreia de A Substância no festival de Cannes de 2024, vem se falando muito sobre as consequências desse retrato acachapante e tristemente verdadeiro da trajetória feminina na indústria do cinema — e pouco sobre a influência fundamental que faz isso explodir na tela. Afinal, a jornada de Elisabeth Sparkle, atriz que vive o ocaso com a chegada da idade e recorre a uma medida desesperada na tentativa de se manter à tona, tem tudo a ver com os percalços reais enfrentados por sua intérprete na carreira. Após seduzir Hollywood (e o mundo) com sua beleza em sucessos como Striptease (1996), Demi parecia inatingível — até que a virada dos 40 fez os bons papéis minguarem diante dela.
Em A Substância, é sua arriscada epopeia de transformação do corpo que dá sentido e potencializa a mensagem sobre tais agruras — e tanto a sacada que sustenta essa premissa quanto sua realização em cena devem muito ao terror biotecnológico dos filmes do canadense David Cronenberg. O cineasta conhecido por longas como A Mosca (1986), Crash — Estranhos Prazeres (1996) e Crimes do Futuro (2022) é uma inspiração assumida da diretora de A Substância, a francesa Coralie Farget. A ideia da transmutação voluntária dos corpos em nome de uma ambição — tentação que logo revela resultados aberrantes e surreais — é a pedra de toque de quase toda a cinematografia do canadense, e também a espinha dorsal (para usar uma palavra apropriada) de A Substância.
Quando a personagem de Demi Moore se submete ao experimento que faz uma nova versão jovem e espevitada de si saltar literalmente de suas costas — no corpo de uma vivaz Margaret Qualley — é impossível não sentir um cheirinho de filme do Cronenberg no ar. Similaridade que só vai se tornando mais palpável à medida que a trama toma um rumo de terror e pesadelo, com o corpo de Demi Moore sofrendo todas as consequências da distopia biológica.
Um bom argumento a favor de Fernanda Torres na disputa pelo Oscar é que, nesse mergulho cronenbergiano, a concorrente não tem de se esforçar muito para demonstrar suas emoções: quando o crescendo de horror se instala, boa parte do trabalho cabe às próteses desfigurantes e efeitos práticos. Sabe-se que Cronenberg sorriu ao ver A Substância em Cannes — e isso diz muito.