O melhor amigo do homem é quadrúpede, late e gosta de ter a barriga coçada — ou ao menos é o que dizem filmes como Sempre ao Seu Lado e Marley & Eu. A julgar pelo iconoclástico Ruim pra Cachorro, porém, tal sentimentalismo já está batido. Sem o charme de Richard Gere ou Owen Wilson naqueles dois longas de sucesso, o dono da vez é um cafajeste incorrigível e embriagado, que prefere passar os dias em autoindulgência do que cuidar de seu parceiro canino, o qual maltrata e abandona. O protagonista de quatro patas, Reggie (dublado por um sempre histriônico Will Ferrell), descobre então a companhia de outros vira-latas pelas vielas e, gradualmente, chega à conclusão vingativa mais lógica possível: ele deve se unir a seus novos amigos para arrancar o pênis do homem que o desprezou.
Vulgar e absurdo, Ruim pra Cachorro satiriza um dos últimos bastiões da pureza no cinema: os cãezinhos indefesos. Com um misto de efeitos especiais e animais de verdade, o filme exibe desventuras caninas do mais baixo calão, recorrendo a tiradas fálicas, acidentes psicodélicos e escatologia. Assim, a produção se soma a outros lançamentos recentes que confirmam: a comédia adulta, que teve um reinado forte nas telas nos anos 1980 e 1990 com o uso de piadas tão picantes e explícitas quanto infantilizadas, está de volta de forma triunfal.
Para verificar a extensão do fenômeno, não é preciso buscar muito longe. Em julho, Que Horas Eu Te Pego?, com Jennifer Lawrence, se tornou o exemplar mais bem-sucedido do gênero nos últimos anos, arrecadando mais de 80 milhões de dólares ao redor do globo ao mostrar a estrela como uma mulher adulta decidida a tirar a inocência de um jovem. Logo depois, Loucas em Apuros diversificou o filão com seu protagonismo asiático. No momento, Bottoms — ainda sem título ou data de estreia por aqui — colhe êxito no circuito indie americano graças ao humor focado na astúcia de duas adolescentes lésbicas que desejam perder a virgindade.
Ao longo da década passada, o gênero já havia se tornado raridade no circuito de distribuição mundial, relegado a lançamentos no streaming ou a fracassos totais — salvo exceções como Bons Meninos (2019). A ressurgência ocorre embalada por alguns fatores. Divorciadas da liderança masculina de outrora, as comédias que hoje encantam e chocam o público apelam para novos pontos de vista, fazendo piada com pautas que vão da crueldade animal até o racismo. Além disso, 2023 é um ano anêmico de blockbusters fantasiosos, tanto pelo esgotamento criativo quanto pelos adiamentos causados pela greve em Hollywood. A escassez abriu alas para a ascensão do filme de orçamento médio, aquele que suscita reações com as quais a indústria do cinema pode sempre contar: riso e medo.
Nesse cenário, não é de estranhar que o humor adulto volte a marcar território nos cinemas, com suas tramas cheias de palavrões e o olhar voltado para personagens, vá lá, imperfeitos. Em Ruim pra Cachorro, o pacote vem com elenco de luxo: na versão original, cães revoltados, humanos terríveis e até sofás ganham as vozes de Jamie Foxx, Isla Fisher, Josh Gad, Sofía Vergara e Randall Park. No Brasil, eles são substituídos por nomes da comédia stand up como Bruna Louise, Fábio Rabin e o grupo Os Quatro Amigos. Em inglês ou português, latidos para maiores não faltam.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861
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