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Fernando Schüler

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A traição da diversidade

Um traço da cultura woke é a conversão de quase tudo em retórica

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 out 2024, 16h12 - Publicado em 26 out 2024, 08h00

A Economist fez uma ampla matéria sugerindo que estamos vivendo um recuo da onda woke, em especial nos Estados Unidos. Por onda woke, leia-se a obsessão em torno de temas de gênero, raça e orientação sexual, que ganhou incrível velocidade desde o início da década passada. Isso no embalo das redes sociais, de movimentos como o Black Lives Matter, a reação à eleição de Trump e as guerras culturais. Um movimento que rapidamente migrou das universidades para as empresas, para a publicidade e se tornou um tanto asfixiante nos anos recentes. A onda agora parece ter dado uma esfriada. O ponto de virada pode ter sido aquele comercial da Bud Light com imagem da Dylan Mulvaney, a ativista trans, na latinha da cerveja. Todos conhecem o resultado. As vendas despencaram, a empresa teve um prejuízo histórico. Não foi um caso isolado. Uma série de empresas, como John Deere, Disney e muitas outras, anunciou seu recuo. O caso mais recente é o da Ford, informando que não usará mais cotas em contratações e evitará os “temas polarizantes” da agenda identitária. A mudança das empresas não se dá no vácuo. Menções ao termo “privilégio branco” caíram de 2,5 vezes a apenas 0,4 para cada milhão de palavras no New York Times, entre 2020 e 2023. E menos de metade do público, em uma pesquisa Gallup/Bentley, acha que as empresas devem se manifestar sobre questões raciais ou LGBTQIA+. Há sinais de mudança na cultura.

Uma hipótese é de que as pessoas, devagar, vão aprendendo a separar o joio do trigo. Aprendendo que é ótimo cultivar valores como o respeito, a tolerância e o acesso a oportunidades. Mas que é péssimo que esses valores, reunidos sob a ideia generosa da diversidade, se convertam em ideologia. Com tudo a que uma ideologia tem direito: em vez da abertura à diferença, o controle; em vez do respeito, a lógica do conflito permanente; este estranho destino que parece se seguir a tudo que se converte em ideologia: o esquecimento dos melhores valores que estavam lá, quando tudo começou. De minha parte, sempre tive esta curiosidade: por que raios a obsessão identitária tomou de assalto as empresas? Por que se abriu tanto espaço para esse curioso tipo que é o “ativista da empresa”. Ele e sua retórica pronta, seu horror a quem pensa diferente, sua incrível capacidade de estar sempre próximo dos centros de decisão. Tempos atrás, conversei com alguns líderes empresariais sobre o tema. A maioria não sabia bem explicar. “As coisas simplesmente foram acontecendo”, disse um executivo. A princípio, pareciam ser ótimas ideias. Palavras bacanas sobre “inclusão” e “respeito”. Uma sugestão aqui, a recomendação do setor de RH ali, uma campanha identitária, algum conselheiro dizendo que “é importante criar um comitê de diversidade”. E logo veio a ladeira. Os cursos de “letramento de gênero e racial”, banimento de palavras, códigos infinitos de conduta, disque-denúncias. Um executivo foi claro: o que conta é o medo. “Essa turma tem poder de afetar a reputação das empresas, é melhor prevenir.” Na prática, se criou uma sutilíssima chantagem. Algo do tipo: somos minoria, mas se nossa pauta não andar, coisas complicadas podem acontecer.

“Um traço da cultura woke é a conversão de quase tudo em retórica”

Faz sentido. O mundo hiperconectado fez crescer a fragilidade de qualquer um. A era do que James Bartholomew chamou de “sinalização de virtude”. A tagarelice do bem. O tipo que adora um jatinho, mas não perde a chance de falar em aquecimento global; que vê sua identidade como um santuário, mas a do vizinho como perversão. Vai aí um traço da cultura woke: a conversão de quase tudo em retórica. Vale para a composição étnica de um comercial, um simples debate na faculdade, ou quem sabe para o tamanho das lingeries e os tipos de modelos em um desfile da Victoria’s Secret. Em uma palavra: a obsessão. A posição do righteous, o “moralista”, de Jonathan Haidt. O que costumamos chamar de monismo na teoria ética. Na prática, a migração, por vezes bastante sutil, da inclusão para a exclusão. A ideia de que um certo aspecto da realidade — exatamente aquele no qual eu acredito — é capaz de organizar o mundo e dizer o que define a justiça e a virtude. Algo que já foi a ideia de “classe social”, para a esquerda, mas que em algum momento migrou para a órbita das “identidades”. E, a partir daí, a marcação cerrada, as paredes com slogans, o discurso emotivo. E logo a intolerância, a regulação da linguagem, do gesto. Tudo que vai virando o pão de cada dia. Mas que devagar vai gerando impaciência.

Há um paradoxo aí: o empobrecimento da ideia de diversidade. A ideia bobinha de que a imensa variedade humana possa ser enquadrada em dois ou três pertencimentos coletivos, associados a critérios de gênero, raça e orientação sexual. Tempos atrás, li o texto que dizia ser “a raça o fator essencial na definição de nossa identidade”. Achei perfeitamente razoável que alguém se defina dessa maneira. Mas implausível, como um tipo de metafísica. Espécie de monismo existencial, que termina por esterilizar, em vez de dignificar, a ideia de diversidade. Identidades podem surgir do cultivo de diferentes valores e formas de pensar. De vínculos afetivos, da religião, da formação cultural. Ou quem sabe de um ativo senso de individualidade, do cosmopolitismo, do amor à ciência e à dúvida intelectual. Não passa de uma visão presunçosa da vida definir um ranking particular para hierarquizar essas coisas.

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O que parece ter se perdido é a hipótese da aprendizagem. Nunca me esqueço da história da beer summit, nos jardins da Casa Branca. Em um dia do verão de 2009, Henry Louis Gates, professor negro de Harvard, chegou de viagem e por alguma razão não conseguiu abrir a porta de sua casa. Forçou a entrada, com a ajuda do motorista. Foi quando uma viatura da polícia foi verificar o que se passava e o professor acabou preso por James Crow­ley, um policial branco. Crow­ley alega que prendeu o professor apenas porque ele o ofendeu por estar fazendo o seu trabalho. Gates viu ali um claro caso de racismo. Quando o caso estava pronto para se tornar uma guerra, Barack Obama, recém-­eleito, entrou em cena. Ligou para os dois lados e convidou Gates e Crow­ley, além do vice, Biden, para uma cerveja na Casa Branca. Aquela cena sempre me vem à cabeça. O olho no olho. A conversa serena. A chance para o aprendizado, contra a guerra. O gesto de Obama parece perdido no tempo. Mesmo instituições de ensino parecem não ter o sentido do diálogo e do aprendizado. Não é nada bom. Significa perder uma lição elementar da tradição iluminista. De que somos capazes de compreender as razões uns dos outros e revisar posições. E perdoar, inclusive, e não enfiar no pescoço a faca de uma virtude autoproclamada. Celebrar, em síntese, a incrível riqueza da diversidade, em vez de usar ideias generosas como uma nova forma de poder. Como, aliás, estamos cansados de observar, ao longo da história.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916

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