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Fernando Schüler

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As lições da Argentina

O ‘risco à democracia’ virou narrativa de marketing político

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 09h49 - Publicado em 25 nov 2023, 08h00

Confesso que me surpreendi. Não tanto com a eleição, mas com o “baile” de Javier Milei, presidente eleito com a maior votação da história da Argentina. Há muitas lições. Uma delas é que a campanha do medo, fabricada pelos marqueteiros brasileiros, de Sergio Massa, não funcionou. A campanha tentou todos os truques sujos imagináveis. Um deles mostrava crianças com armas na mochila; outro sugeria que o voucher educação, proposto por Milei, faria com que os alunos pobres tivessem que pagar pela educação. Isso fora a narrativa do “risco à democracia”, velha conhecida, que parece ter se tornado uma especialidade de exportação do marketing político brasileiro.

Muita gente tentou associar Milei à ideia da “antipolítica”. O que se viu, ao final, foi o oposto. Designar o adver­sá­rio como “inimigo da democracia” equivale a retirar dele um sentido de legitimidade. Na prática, significa negar um princípio elementar da vida política: a capacidade de aceitar os contrários. Se a democracia tem dono, perde-se quase tudo de seu sentido fundamental. No Brasil, esta retórica funcionou; na Argentina, o tiro saiu pela culatra. A grande imprensa não entrou no jogo. Trataram a retórica do “risco à democracia” como o que ela era, de fato: narrativa eleitoral, não um dado de realidade.

Os juízes não entraram em campo. Vai aí outra lição das eleições argentinas: é possível se fazer uma disputa política dura sem que o Estado funcione como “curador” da opinião. Sem combater fake news, sem praticar nenhum tipo de censura ou edição dos debates eleitorais. Houve discursos de ódio, com um candidato sendo chamado de “ladrão”, e outro sugerindo que seu adversário teria algum problema mental. E uma quantidade respeitável de mentiras. Coisas como espalhar que Milei propunha a “venda de crianças”. E, pasmem, uma montanha de gente criticando o sistema de votação, as urnas não eletrônicas, arcaísmo argentino. E denunciando fraudes, reais ou imaginárias. Nada disso fez com que a justiça eleitoral interferisse no direto à expressão. O próprio “mercado de ideias” tratou de diluir esses temas. Cada notícia ou discurso bizarro foi digerido pelo contraditório, na imprensa, nos debates, nos cafés, nos programas eleitorais. Nenhum juiz falou em “desordem informacional”, censurou filmes ou sugeriu que os “eleitores ordinários” não tinham condições de decidir no que acreditar. A democracia argentina nos passou uma lição constrangedora. Mas não tenho expectativa de que vamos aprender alguma coisa com isso.

Milei teria conseguido o prodígio de tornar populares as ideias liberais? Lemos por aí que os jovens estão se voltando à esquerda, com a retórica identitária. E agora essa? Um candidato que gosta de Mises e Fried­man, que quer um Estado mínimo, se tornar o guru da juventude empobrecida, na Argentina? Um liberal argentino me disse o seguinte: “Passamos muito tempo falando em livre mercado; o argumento de Milei é essencialmente ético”. Uma inversão: o liberalismo não como a ideologia dos homens de negócios, mas uma filosofia do cidadão comum. Dos que pagam impostos, dão duro, pagam a conta da malandragem e invencionices do mundo político. O “liberalismo como rebelião contra o status quo”, na frase dita no dia da vitória. Se isso vai funcionar, está em aberto, mas o elemento ético está lá. Algo como: “Não nos tratem como otários”. Há vinte anos oferecem subvenções para os mais pobres, e a pobreza só aumenta. O que há de errado? E o que tem a ver com os mais pobres sustentarem uma empresa aérea estatal, e ainda deficitária, como Aero­lí­neas Argentinas?

“O ‘risco à democracia’ virou narrativa de marketing político”

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Há uma retórica outsider aí. O status quo, na política, não é apenas lugar de poder, mas uma forma de pensar. Exemplo: a Argentina tem um dos principais centros de ópera no mundo, o Teatro Colón. O teatro deixaria de ser financiado pelo governo? Perguntei isso a um dos próceres da campanha e não houve resposta clara. “O Colón talvez seja uma exceção”, me disse. Talvez se possa “buscar fundos no setor privado.” Retruquei: “Mas o teatro não poderia passar à gestão privada?”. O sujeito me pareceu surpreso. Mesmo um liberal não concebia algo que é relativamente comum (e bem-sucedido) aqui no Brasil. Mencionei a Sala São Paulo e a Osesp, de gestão privada, e ele rapidamente compreendeu. Vale o mesmo para a revolução copernicana nas subvenções sociais. Se a ideia é subsidiar a energia ou uma cesta de produtos básicos, para que pagar a conta de todo mundo? Por que não focar apenas nos mais pobres? Porque uma família de renda alta, que pagaria o equivalente a 100 dólares de energia, paga menos de 20% do valor? E qual o sentido do subsídio genérico à gasolina, que faz a festa dos brasileiros, nas áreas de fronteiras? Milei anunciou que privatizará a TV estatal. O.k. Há algo de excepcional aí? Alguém realmente acha que o governo deve ter um canal de televisão? Quando retiramos os óculos da ideologia, boa parte do que apresentam como terríveis ideias liberais (e aí não se inclui a dolarização da economia) são argumentos de bom senso.

A grande pergunta: por que uma sociedade habituada ao paternalismo estatal toparia o processo doloroso de migração para uma economia liberal? Milei diz que “não haverá gra­dua­lis­mos”, que fará um ajuste fiscal duro, e que está preparado para enfrentar as ruas “com a força da lei”. Diz que o primeiro ano será difícil, mas que em 2025 a inflação cederá. Há um imenso otimismo aí. A questão é saber o que aquele motorista de táxi, que em uma noite qualquer encontrei raivoso com a “casta”, em Buenos Aires, e que votou em Milei, pensará quando descobrir que a conta da luz e o preço do combustível aumentaram 20%. E quando os funcionários da TV estatal convencerem seus colegas de que a privatização é a destruição de um “patrimônio histórico da nação argentina”. Tudo ao sabor dos sindicatos e bumbos peronistas, que fatalmente voltarão às ruas. Mais do que um desafio para a Argentina, é um laboratório para a América Latina. Eleger uma alternativa liberal é uma coisa; outra é aceitar o ônus de produzir e viver em uma sociedade liberal. Milei faz alusão a um passado glorioso, com a Argentina entre as maiores economias do mundo; menciona Alberdi, o patrono do liberalismo argentino, no século XIX. E apela às “fuerzas del cielo”, que se transformaram na multidão de jovens que o apoia. E faz sua aposta. Se ganhar, quem sabe se equipare a Perón, ainda que pelo lado inverso, como mito argentino; se perder, é provável que devolva a faixa a um peronista, nos velhos salões da Casa Rosada, e o dramalhão argentino seguirá seu curso.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869

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