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Cabresto digital?

É do cidadão a prerrogativa irredutível de lidar com o ruído

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 12 out 2024, 08h00

“Criamos o cabresto digital”, disse a ministra Cármen Lúcia dias atrás. Ela sugere que há barulho demais. Muita notícia, muita gente dando palpite, inventando histórias e resmungando por aí. E que “pelo volume, pela viralização, nos deixou sem condições de escolher livremente”. Quando li isso, parei para pensar. Só no X, podem ser 12 ou 20 milhões de postagens em um único dia. Boa parte delas sobre política. Devemos ter uns 600 000 influencers digitais com alguma audiência, palpitando sobre o que der na telha. Isso, fora o que a imprensa profissional produz e o que cada um de nós escuta no escritório, na faculdade, ou lê naquelas telinhas irritantes. Não passa de uma constatação banal o fato de que vivemos sufocados por informação. A pergunta óbvia a fazer: isso não significaria que temos mais liberdade, e não menos, para decidir qualquer coisa? E mais poder para intervir na cena pública do que na era do “silêncio”?

O raciocínio da ministra associa “mais informação” com “menos liberdade”. Não é propriamente uma ideia nova. Lembro do ministro Lewandowski e sua tese sobre a “desordem informacional”. Em meio ao caos e ao ruído, o “eleitor ordinário” não teria condições de processar todo o mar de informação. E por isso, quem sabe, precisaria de uma ajudinha do Estado. Uma “curadoria”, como tantas vezes escutamos. Naquela ocasião, Lewandowski mandou censurar um vídeo que falava dos casos de corrupção nos governos de Lula. Não entro no mérito. Pelo que entendi, achava que aquilo era impróprio, porque os processos estavam sendo anulados, e tudo seria “desinformação”. E o nosso “editor da sociedade” deveria entrar em campo.

Meu argumento, aqui, é bastante simples: não há nenhum cabresto na abundância de informação. Voto de cabresto é algo bem documentado em nossa história. Seu traço definidor é a violência e a restrição à informação, e não o contrário. Ainda lembro de minhas leituras de Victor Nunes Leal e seu Coronelismo, Enxada e Voto, dando conta daquele Brasil rural, feito de gente simples “analfabeta, não lendo jornais nem revistas, nas quais se limita a ver as figuras”. O cabresto era feito do voto aberto. A célula já preenchida, a pressão econômica direta, os mortos que votavam, em uma época de fraude e sem Justiça Eleitoral. Sugerir que o barulho de nossa democracia digital corresponda ao cabresto é um mau argumento. O truque de confundir a falta com o excesso. E um truque perigoso. Pois o que ele exige, logo ali à frente, é um novo tipo de “coronelismo”, feito pelo Estado tutor.

Há algo aí do que o economista Harold Demsetz chamou de “lógica do nirvana”. Demsetz aplicava a tese à economia, dizendo que um governo ideal poderia, de fato, corrigir inúmeras ineficiências de mercado, mas que isso não era necessariamente verdadeiro para governos “reais”, feitos de políticos de carne e osso. O mesmo se aplica à política. Sugerir que os cidadãos terão condições de exercer sua liberdade apenas em um estado de “plena informação” (seja isso o que for) não passa de uma versão ingênua da falácia do nirvana. A sina das democracias sempre será a da decisão feita sob informação imperfeita. Tenho curiosidade em saber quantos se lembram de ao menos um voto de seu representante no Congresso. Tempos atrás, li uma pesquisa que perguntava se as pessoas sabiam o que eram as “emendas de relator”. O tema não saía da imprensa, mas 87% responderam que basicamente não sabiam nada sobre o assunto. Vale o mesmo sobre as escolhas substantivas. Privatizar ou não a Sabesp? E o Porto de Santos? Voto eletrônico ou no papel? A sociedade é diversa. E sei que isso parece insuportável para muita gente. Há quem pareça sonhar com uma máquina da verdade, capaz de separar o joio do trigo e fazer boas escolhas, pela sociedade. De fato, a inteligência artificial (IA) pode ajudar. Ainda na outra semana, fiz um teste. Coloquei em um aplicativo de IA algumas das minhas ideias e perguntei em quem deveria votar. Sem pestanejar, ele deu um resultado. A máquina pode ajudar. Mas seu uso continua sendo uma escolha individual. Aplicada à sociedade, sob a batuta de um tribunal, a engenhoca seria apenas a reedição tecnológica da velha ideia do ditador benevolente.

“É do cidadão a prerrogativa irredutível de lidar com o ruído”

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Todo mundo aplaudiu o caráter “democrático” das eleições da última semana. Mas acho que um detalhe nos escapou: ao contrário do que aconteceu em 2022, desta vez nossa Justiça Eleitoral basicamente não interveio no conteúdo do debate eleitoral. Não tivemos nada parecido com a “caça às fake news” e a edição do debate por parte do Estado. E mais: quando o candidato Pablo Marçal efetivamente publicou aquela fake news inconteste, foi a própria sociedade, nos jornais, nas redes, que expressou seu repúdio. Os apaixonados tentaram amenizar o problema. Muitos disseram que fazia parte do jogo, que os “outros também agiam assim”, e coisas do tipo. Pois bem: os apaixonados também fazem parte da democracia. E em muitos momentos seu ponto de vista é perfeitamente relevante. Seja para nos alertar sobre algum pedaço da verdade que perdemos, seja para obrigar o bom argumento a ser ainda melhor, seja apenas para que todos saibam como uma parte da sociedade pensa. Naquele caso, Marçal acabou dançando. Pois ali, sim, havia uma fronteira entre o lícito e o ilícito. Uma fronteira que só pode ser dada pela lei. Pela regra devidamente tipificada. E não pelo “acho”. Pela imaginação ou interpretação iluminista de alguma autoridade pública.

Sempre guardo comigo as palavras de Madison dizendo que “não há como eliminar o risco das facções em uma República. Apenas controlar seus efeitos”. Ele se referia não apenas aos movimentos agressivos de minorias ou maiorias, mas também ao “espírito de facção”. A toda sorte de paixões, erros e irracionalidades na vida de uma sociedade. Seu ponto era exatamente confrontar a falácia do nirvana. Dizer que os cidadãos fatalmente vão decidir com informação precária, que há valores distintos em disputa. E que mesmo por isso alguns cuidados institucionais são necessários. Mas jamais usar esse argumento para passar de contrabando a ideia do “bom leviatã” nos informando sobre o falso e o verdadeiro e sobre a quais valores devemos ser fiéis.

Quanto à “desinformação”, esqueçam. É um problema sem solução. Seja porque somos imperfeitos, seja porque a incerteza é a regra na escolha pública. E, se não for por isso, por algo ainda anterior: o cidadão é o dono da democracia. E é dele a prerrogativa irredutível de lidar com o ruído. Antes de um problema cognitivo, uma questão de legitimidade. A boa notícia é que as pessoas aprendem. Não em alguma universidade, mas como uma sabedoria prática. No erro e no acerto, no contraditório, que é próprio da vida democrática. Cabresto, para ser claro, não é o excesso de informação, mas o Estado entrando em campo para tirar do jogo as ideias que incomodam. O parlamentar que denuncia, o youtuber que sugere coisas “erradas”, o cidadão que desconfia de alguma coisa. Cabresto é a imposição do medo, o abuso de poder. Não a garantia da liberdade. Se interessar a alguém, é essa a grande lição do Iluminismo, que as boas democracias liberais tão bem souberam traduzir.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914

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