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Fernando Schüler

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Fantasma de Dona Santinha

O paternalismo estatal não é apenas uma ‘cultura’, mas instituição

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 5 out 2024, 08h00
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  • “Vamos acompanhar CPF por CPF”, diz o ministro da Fazenda, para evitar a “dependência psicológica”. Não entendi se era só para quem recebe o Bolsa Família, ou todos os brasileiros. Mas fui em frente, agradecido pelo cuidado. No Congresso, a bruxa anda solta. “É preciso proibir os aposentados”, diz um projeto. “Os idosos vão terminar como nos bingos, todos viciados!” Em outra proposta, leio que é preciso bloquear o uso do cartão de crédito. E proibir o pessoal que recebe benefícios. E também a publicidade. De um senador, escuto que é preciso acabar com as apostas eleitorais. “Uma ameaça à democracia”, vaticina ele. Imagina só, apostar quem vai para o segundo turno em São Paulo ou BH. Ou se o Trump ganha da Kamala Harris. De fato, seria o fim para a democracia.

    Observando essas coisas, de cara me lembrei de Dona Santinha. Reza a lenda que foi ela quem assoprou nos ouvidos do presidente Dutra, que por acaso era seu marido, para mandar fechar os cassinos, “em nome da moral e dos bons costumes”, em 1946. Nunca soube bem se essa história é mesmo verdadeira. Não importa. O fato é que a decisão deu certo. Até hoje, oitenta anos depois, boa parte, se não a maioria do mundo político, ainda acha que cassino só vai dar problema, que gera dependência, que vai destruir famílias, que o brasileiro não está preparado, e tal e tal. E que cabe ao Estado meter a colher. De minha parte, sou tremendamente cético com tudo isso. Não acho que caiba ao governo proteger pessoas adultas contra o vício de ficar apostando em alguma coisa. Tive um conhecido que se viciou um tempo em corridas de cavalo. Nas noites frias de Porto Alegre, lá ia ele, sozinho, ao jóquei. Perdia uma grana e voltava para casa, feito cachorro molhado. Durou anos, e nunca me passou pela cabeça que o governo tinha alguma coisa a ver com aquilo. O mesmo se dá com a internet. O pessoal anda viciado em idiotices, no TikTok, YouTube. E mesmo com as compras de bugigangas nas lojas virtuais. Até a grande doutora. Anna Lembke, autora de Nação Dopamina, confessou na outra semana, aqui em São Paulo, que já foi viciada em novelas românticas. Foi um perrengue, mas ela aprendeu a dominar aquilo. É certo que o governo pode criar condicionantes para o Bolsa Família. Não é dinheiro de mercado. É uma concessão paga pelo contribuinte. Mas qualquer coisa muito além disso supõe que caiba ao governo proteger os cidadãos de sua própria incapacidade de escolher o tipo de vida que deseja levar. E aí, de fato, as coisas se complicam.

    O Brasil é um pouco Dona Santinha. País onde o paternalismo estatal não é apenas uma “cultura”, como escutei, por estes dias, mas uma instituição nacional. Ainda agora, em meio às eleições, fui convidado para um debate sobre o voto facultativo. Não fui. “Mas o senhor é um dos poucos que defende isso, professor.” Pois é. Lembrei a ele que eu e mais praticamente todas as grandes democracias do planeta. Mas na verdade não fui para não escutar as bobagens de sempre. A ideia de que o voto tem que ser obrigatório porque “não temos maturidade”. Isso depois de 21 eleições, desde a redemocratização, o que deve nos fazer o povo mais lento do planeta para amadurecer. Ou então escutar que “o voto facultativo prejudica os mais pobres”. A velha tese que associa — ad infinitum — pobreza e hipossuficiência. Tese em que cabe de tudo. Não saber poupar, escolher escola, votar ou não votar, apostar ou não em uma bet. Tudo que nós, os intelectuais, resolvemos achar em nome das pessoas cuja opinião solenemente dispensamos.

    Minha tese é que há um truque nisso tudo. Um jogo malandro de poder em torno da tese da hipossuficiência. Exemplo típico é o do financiamento a campanhas eleitorais. A suposição geral é que nossos pobres partidos políticos são incapazes de buscar seu próprio financiamento junto aos eleitores. E os eleitores, por sua vez, incapazes de decidir se dão ou não algum dinheiro aos candidatos. Os partidos poderiam abrir cada um o seu crowdfunding, pedir apoio. No passado recente, partidos tão díspares como o PSOL e o Novo tiveram relativo sucesso nisso, mesmo sendo muito menores que os partidos tradicionais. O problema é que tudo isso dá uma trabalheira. E, por óbvio, muito menos dinheiro. Mais fácil é aprovar uma lei, numa noite qualquer no Congresso, sem muito alarde. E logo debitar 5 bilhões de reais da conta dos cidadãos para o fundão eleitoral. Outro caso, ainda mais esquisito, foi a volta disfarçada do imposto sindical. Nossa Suprema Corte decidiu fazer uma sutilíssima inversão: ao invés do sindicato ter o ônus de obter a aprovação do trabalhador, para cobrar a contribuição (que é exatamente o sentido dado pela reforma trabalhista), agora é o trabalhador que precisa correr atrás e dizer que não quer. No meu caso, tive que fazer uma carta, autenticar a assinatura e enviar a dita-cuja pelo correio. Conclusão: sou hipossuficiente para dizer se quero contribuir, mas hipersuficiente para percorrer um pequeno calvário burocrático para recusar minha contribuição.

    “O paternalismo estatal não é apenas uma ‘cultura’, mas instituição”

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    O tema que talvez melhor traduza nosso Estado Dona Santinha seja o do FGTS. Ainda agora foi matéria de decisão no Supremo. O ministro Barroso acertou dizendo que não fazia sentido o governo capturar 8% dos salários e depois pagar TR + 3% ao longo dos anos. E com isso ir corroendo a poupança das pessoas. Em oito dos últimos dez anos, o fundo perdeu para a inflação. Ano passado, se tivesse liberdade de aplicar o dinheiro, o trabalhador teria conseguido fácil um rendimento de 10%, ao invés dos 4,8% que recebeu. “Os cotistas são forçados a uma remuneração extremamente baixa para bancar investimentos do governo”, lascou o ministro. A decisão final foi garantir que a remuneração do fundo acompanhasse a inflação. Dos males o menor, mas ainda assim Dona Santinha. A pergunta é por que raios ninguém pensou em permitir ao menos que o trabalhador pudesse escolher onde aplicar o dinheiro? Vamos dizer: entre uma cesta de papéis conservadores, em instituições devidamente autorizadas. Pois é. Como de hábito, ninguém pensou.

    Em todos esses casos, a lógica é a mesma: aos “de baixo”, trabalhadores, eleitores ou contribuintes, resta a hipossuficiência; aos “de cima”, sindicatos, partidos e o próprio governo, o dinheiro. E, logo, o poder. O sequestro da prerrogativa de escolha. De modo que meu recado é o seguinte: toda vez que nosso sistema de poder ensaiar uma retórica paternalista, desconfiem. Toda vez que disserem que o brasileiro é incapaz, não tem maturidade para ir a um cassino, decidir se deve votar, financiar ou não um candidato, pagar o sindicato, colocar a poupança aqui ou ali, e o filho nessa ou noutra escola, digo sem pestanejar: desconfiem. Não há nenhuma secreta sabedoria por traz disso. Há apenas um grupo de pressão ganhando alguma coisa. Lá no fundo, é o fantasma de Dona Santinha, a madrinha de nossa hipossuficiência. Sempre convincente, sussurrando nos ouvidos do poder, “proíbe, multa, tutela essa gente… Senão é o caos”. Vai aí nosso desafio. Dar um jeito nesse fantasma, que vem do fundo da história brasileira, e que até hoje anda por aí, nos assombrando.

    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913

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