“Nenhum governo”, disse o presidente de Harvard, Alan Garber, “deve ditar o que universidades privadas podem ensinar ou contratar.” Garber virou uma espécie de herói da universidade. A história é conhecida. O governo mandou uma carta às universidades (não apenas a Harvard) com exigências, sob pena de cancelamento dos financiamentos públicos a projetos acadêmicos. A partir daí, como tudo nos tempos atuais, as opiniões se dividem. Do lado republicano, trata-se de exigir que as universidades respeitem as pessoas como iguais, aceitem a diversidade de visões e combatam atividades “antiamericanas”. Em particular, confrontem o antissemitismo. Visto por esse ângulo, tudo soa bastante republicano. Em uma sociedade diversa, é de fato estranho que uma universidade funcione como samba de uma nota só, no terreno ideológico. Pesquisa do Harvard Crimson mostrou que 80% de seus professores, na Faculdade de Artes e Ciências, se identificam como “progressistas” ou “muito progressistas”; 2% se dizem “conservadores” e menos de 1% “muito conservadores”. Há algo estranho aí. Não muito diferente, diga-se de passagem, de boa parte das universidades brasileiras. Algum problema nisso?
A pluralidade de visões é vital para um bom ambiente acadêmico? Ou essa conversa sobre “diversidade” é no fundo seletiva e limitada a grupos de pressão? No campo democrata, a conversa é outra. Pode ser mesmo verdade que as universidades tenham se tornado terrenos controlados por uma ideologia, mas e daí? E mais: caberia ao governo corrigir essas coisas? Foi esse o tom da resposta de Harvard a Trump, decidida a processar o governo. A pergunta que muita gente me fez é simples: quem tem razão? A carta fala em combate ao antissemitismo, o que parece razoável e necessário. Mas exige também que a universidade tenha “diversidade de pontos de vista”. E que para isso é preciso uma auditoria externa, além da contratação de “novos docentes” que equilibrem um pouco a balança intelectual. Seria como passar de 1% para 20% o número de “conservadores”. Mas como isso seria feito? Um concurso para professores de sociologia restrito a simpatizantes republicanos? O.k., é um pouco caricatural isso. Como então reduzir o poder de professores e funcionários “mais comprometidos com o ativismo” do que com o rigor acadêmico, como diz o documento do governo? A maior parte dos professores que pesquisam temas identitários são também ativistas identitários. É evidente que não há muita isenção acadêmica nisso. O ponto segue o mesmo: cabe ao governo resolver essas coisas? Harvard disse que não.
No final disso tudo, Trump perderá. O que seu governo tenta fazer é uma “revolução gramsciana” a partir do Estado. Revolução gramsciana aqui entendida em um sentido direto: a conquista da hegemonia sobre instituições. Universidades, mídia, o mundo da cultura, da educação e das ONGs. É ao que vamos assistindo: corte de recursos nas televisões públicas, suspensão de programas da Usaid, cancelamento das políticas de diversidade, equidade e inclusão. Um jogo pesado. Algo na linha: toda hegemonia que a esquerda levou décadas para consolidar, nós vamos dinamitar ao longo de uma gestão. É marca de um novo tipo de conservadorismo global, distinto da tradição clássica do liberalismo. Um dos mais agressivos defensores dessa ideia é um jovem hiperativo, fellow do Manhattan Institute, Christopher Rufo. Sua visão é simples: os liberais perderam a guerra para a esquerda. Eles ficam lá, pregando seus princípios abstratos em defesa dos direitos civis, da liberdade de expressão, da autonomia universitária e outras ideias. Enquanto isso, a esquerda woke ocupou os espaços. Foi conduzindo sua política “maquiavélica” de controle sobre a linguagem, as escolas e, logo, sobre as posições acadêmicas e as áreas de “diversidade” das empresas. A tudo isso, os liberais assistiram passivamente, repetindo seus slogans bacanas sobre “tolerância” e “livre mercado”. A lógica da “nova direita” é dizer que, para ter algum sucesso contra o ativismo de esquerda, nesta época nervosa no mundo das redes, é preciso uma turma mais dura. Quem sabe, ao estilo caubói de J.D. Vance, passando um sabão nos líderes europeus. Ou, quem sabe, o próprio Trump, dizendo que só existem dois sexos, homens e mulheres. Ou, ainda, Elon Musk, cortando até a raiz o “dinheiro fácil” dos ativistas.
“Problema: governos duram quatro anos, Harvard tem 400”
No mundo real da política, o novo conservadorismo descobriu uma oportunidade: a esquerda pode ser majoritária na imprensa e nos “aparelhos” da sociedade civil. Mas perde o jogo no espaço digital. Símbolo disso foi o peso de um podcast como o de Joe Rogan nas eleições americanas, ou de um comunicador como Tucker Carlson. Trata-se de um espaço, por definição, não controlado (até agora) pelas elites tradicionais e uma via aberta para o populismo eletrônico e o sucesso eleitoral de inúmeros líderes da nova direita. Foi o caso de Milei, na Argentina, ou de Bolsonaro, no Brasil, em 2018. Com a vitória eleitoral, surge a chance de usar o governo para confrontar a hegemonia da esquerda e reformar as instituições da cultura. É a hipótese do gramscismo às avessas que seduz tipos como Rufo e outros teóricos da nova direita.
Só há um problema: uma “revolução gramsciana” de cima para baixo, a partir do Estado, é uma contradição em termos. Governos duram quatro anos. Harvard logo, logo fará 400. Trump pode cortar verbas federais e mandar suspender regramentos a favor da diversidade. Mas não tem como desativar o que se passa na cabeça das pessoas. Terminado o governo, os mesmíssimos processos tendem a retornar, um a um, e com uma força ainda maior, visto que renascerão com a pátina de um certo heroísmo. Assistimos a uma pequena mostra disso no regime militar brasileiro. No auge da repressão, no final dos anos 60, escreveu Roberto Schwarz: “A hegemonia da esquerda era vista nas livrarias cheias de marxismo, nas estreias teatrais, na movimentação estudantil, nas proclamações do clero avançado”. Eu mesmo testemunhei isso, ainda estudante, na transição dos anos 80. É perfeitamente lógico que o Estado faça valer direitos republicanos, como o tratamento igual, e se recuse a usar recursos dos cidadãos para financiar esta ou aquela ideologia. Coisa bem diferente é o governo utilizar de recursos dos cidadãos para impor esta ou aquela visão de mundo para universidades e empresas. A equação possível é: governos devem ficar fora das guerras culturais. Se uma universidade quiser ter sua visão ideológica, assim como qualquer organização, que o faça com seus próprios recursos. É possível que seja o momento de Harvard gastar um pedaço de seus fundos e revisar sua quase monocultura ideológica.
E é apenas um sintoma constrangedor de nossa época que a exigência de diversidade real, e não apenas de mentirinha, em uma universidade tenha de vir de um governo. De minha parte, penso que é exatamente essa a lição a extrair disso tudo, aqui no Brasil. Nossas universidades e boa parte de nossa educação também vivem uma monocultura ideológica. E definitivamente não deveríamos esperar a chegada de governo nenhum para mudar essas coisas.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 25 de abril de 2025, edição nº 2941