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Fernando Schüler

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No fim do dia, a liberdade

Em Paris, o interessante não foi a petulância, mas a conformidade

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 3 ago 2024, 08h00
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  • Thomas Jolly, o diretor da festa de abertura dos Jogos, conseguiu o que queria. Sua ideia era fazer uma espécie de manifesto político. Algo em linha com o que ele imagina ser os “valores da República francesa”, envolvendo “inclusão” e “diversidade”. Ele foi escolhido por ser um tipo capaz de “quebrar regras”, e acho que ele realmente tentou fazer isso. Fiquei até imaginando. Thomas e sua equipe reunidos, meses a fio, pensando no que poderiam fazer de verdadeiramente ousado e novo. Em alguma madrugada parisiense, surge a grande ideia: quem sabe drag queens? Quem sabe um trisal? Ou uma inconfessável paródia de A Última Ceia? Fantástico. Nada, repito, nada poderia ser mais inovador.

    Os bispos franceses reclamaram. A coisa toda seria “um escárnio com o cristianismo”. Vejam só. Encenação identitária de um lado, brabeza conservadora do outro. Alguém já viu uma coisa dessas? Inovador mesmo foi o jornalista-militante pulando na piscina para dizer que tudo foi um “recado à extrema direita” interplanetária. A reação sensata veio do amigo João Pereira Coutinho: o melhor é dar de ombros. Algo do tipo: “me poupem, já vi isso em algum lugar”. Logo me lembrei da Virgem Maria do Chris Ofili, adornada com bosta de elefante, causando escândalo na Nova York dos anos 90. E da artista jamaicana Renée Cox e sua A Última Ceia com uma mulher nua no lugar do Cristo, fazendo alguma espuma quando exposta no Brooklyn Museum. Me veio mesmo a memória de quando assisti, em um apartamento enfumaçado, na Porto Alegre dos anos 80, ao Je Vous Salue, Marie, de Godard, numa época em que essas coisas eram saborosamente proibidas, ao invés de pagas pelo erário público. Tudo isso já tem alguma história. O tratamento profano de alegorias bíblicas, variações dos tipos oficiais da “diversidade”. Talvez alguém poderia ter lembrado a Jolly e sua trupe que estamos em 2024. E que talvez a fórmula woke não seja assim mais tão inovadora.

    Mais sem sentido ainda que o mesmo-de-sempre identitário é uma certa choradeira reacionária segundo a qual “a religião não pode ser ofendida”. É claro que pode. A França é a terra de Voltaire, o grande sátiro dos padres e da religião. E o último blasfemador francês queimado na fogueira foi um rapaz de 20 anos, acusado de danificar um crucifixo. Isso em 1762. A pergunta cruel, nesse caso, é se Jolly teria coragem de fazer como seus colegas do Charlie Hebdo e satirizar Maomé e o islamismo. Alguém adivinha a resposta? Ou ainda: a turma teria a audácia de satirizar a própria cultura woke? E se Jolly tivesse um ataque de Trey Parker e Matt Stone e fizesse um quadrinho sequer ao estilo South Park? Seria engraçado escutar a choradeira. Só que do outro lado. Vi uma gozação assim em um portal russo. Sátira da mulher barbuda, do trisal, das drags e afins.

    Na festa parisiense, o interessante não foi a petulância, mas a conformidade. Não a coragem para produzir alguma surpresa, mas a adequação a um padrão. O que não é nada surpreendente. Um dos pilares da cultura woke é exatamente o dogma de que certos grupos e formas culturais não podem ser satirizados. Nem Maomé, talvez pelo medo, nem o riso de si próprio, pelo dogmatismo. De minha parte, dou de ombros. O que não dá é para sugerir, como fez o porta-voz dos Jogos, que aquilo tudo era para “ultrapassar limites”. A cultura woke se define precisamente pela definição muito clara de limites. E o primeiro deles diz respeito ao que entra ou fica de fora do conceito de “diversidade”. Soa um tanto ridículo imaginar que aqueles personagens algo caricatos formem um bom retrato da diversidade francesa. Ou quem sabe da diversidade humana. O que há é um padrão politicamente arbitrado, em torno de variações muito específicas de gênero, raça e orientação sexual. Se você não se enquadra no padrão, paciência. Você possivelmente faça parte de algum grupo opressor, seja de extrema direita ou simplesmente um caipira. O melhor é ir rezar. Ou assistir a alguma reprise do Monty Python.

    É possível cultivar uma confortável indiferença sobre isso, enquanto estivermos discutindo se um grupo de drag queens faz referência a A Última Ceia ou a A Festa dos Deuses. Os bispos franceses que me desculpem, mas não vale perder o sono por causa disso. O problema real é quando esta mesma agenda ocupa espaços de poder, na máquina do Estado, nas universidades e empresas. Ainda recentemente tivemos uma mostra disso na Califórnia, com uma lei proibindo escolas e professores de informar os pais sobre o comportamento dos filhos em questões de gênero. Por exemplo, que o filho de 8 ou 10 anos manifesta o desejo de mudar de sexo. Não se trata de impedir que os pais interfiram na vida dos filhos. Mas de bloquear seu acesso a informações elementares sobre a formação pessoal deles.

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    “Em Paris, o interessante não foi a petulância, mas a conformidade”

    Vale o mesmo para a vida das organizações. Não se trata de satirizar a Missa do Galo na festa da empresa, mas de quebrar critérios de mérito, disciplinar a linguagem, restringir o pensamento crítico, impor cotas e criar linhas de denúncias para os infiéis. A obses­são identitária pode gerar apenas alegorias de gosto duvidoso, mas, quando passa a restringir direitos e regular a vida dos outros, as coisas se complicam. A boa notícia é que muita gente começa a se dar conta disso. Ainda agora, chamou atenção a decisão da John Deere de recuar na fúria woke. Não propriamente um recuo conservador, mas buscando um ponto de equilíbrio. Algo na linha: uma cultura plural é importante, mas “cotas de diversidade e o uso de pronomes neutros não são a política da companhia”. Há uma fronteira bastante nítida, aí. Uma coisa são valores universais associados a respeito, tolerância e oportunidades. Outra é a imposição de uma agenda política. Isto valendo para movimentos woke ou conservadores, indistintamente.

    Niall Ferguson e muitos intelectuais observam que a tolerância às ações do Hamas e ao terrorismo, no conflito do Oriente Médio, fez cair a ficha de muita gente sobre a natureza do mundo woke. Talvez valha o mesmo sobre nossos democratas, por estes dias, chancelando o teatro trágico da ditadura venezuelana. De minha parte, vejo uma mutação mais ampla nisso tudo. Uma pesquisa recente abrangendo 65 das maiores empresas americanas mostrou que desde 2020 há um claro recuo na terminologia woke e que a pauta dos executivos, por agora, é prestar um pouco mais de atenção a “consequências não intencionais” de suas ações. Ótimo. Quem sabe o mundo corporativo brasileiro faça a mesma coisa. No fundo, o desconforto com a festa parisiense talvez tenha vindo exatamente disto: da insistência em repetir uma fórmula cujo tempo já está passando. Menos pela reação conservadora e mais pelo cansaço. A modernidade, vamos lembrar, é filha dos pecados de Giordano Bruno, da irreverência de Voltaire, e não dos queimadores de hereges. Filha do pensamento crítico, e não do disciplinamento da linguagem. Filha de um mundo em que o direito à fala não encontra lugares marcados. E no qual a liberdade, no fim do dia, e por alguma razão difícil de entender, parece sempre dar a última palavra.

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    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904

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