O divórcio das elites
Sócrates definiu como sua talvez única virtude reconhecer que 'nada sabia'. Há um espírito que se perdeu, aí, nesta época de certezas e dedos na cara
James Bennet escreveu um texto inusitado, na revista The Economist, perto da virada do ano. Jornalista consagrado no The Atlantic, editor de opinião do The New York Times, seu ponto era dizer que o Times havia “perdido o rumo” na poeira da polarização política americana. O problema não era o viés “progressista” do jornal. O problema era o traço patológico que isso havia adquirido, em especial na era Trump. A partir daí, o jornal passou não apenas a favorecer ideias mais à esquerda, mas a bloquear sistematicamente as ideias conservadoras. Ele conta sobre a mesquinharia de não permitir sequer a publicação de “cartas ao leitor”, de eleitores de Trump, e a “indignação” com um perfil, ainda que crítico, de um ativista da “nova direita”. A gota de água foi quando Bennet publicou um artigo do senador republicano Tom Cotton defendendo uma ação mais enérgica nos protestos violentos que se seguiram à morte de George Floyd, em 2020. A visão de Bennet era: podia-se concordar ou não com o senador, mas sua visão era legítima. E expressava a opinião de boa parte do público americano. O ponto é que o jornal recuou. Foi apedrejado pela claque de ativistas e Bennet acabou no olho da rua.
O ponto essencial é a ideia defendida por Bennet sobre o papel do jornalismo. Dos onze colunistas do The Times, apenas dois eram “conservadores”, e ainda assim “moderados”. O jornal simplesmente “ignorava a opinião de 150 milhões de americanos”, escreveu ele, em uma nota. Se alguém efetivamente levasse a sério a ideia de “diversidade”, a primeira decisão seria trazer mais vozes à “direita’, no espectro político. Coisa que ninguém, no jornal, estava realmente disposto a fazer. As pessoas continuavam a falar em diversidade, mas agiam de um modo claramente unilateral. Outro ponto é a ideia de que era “perigoso” expor os leitores às ideias de Cotton ou dos apoiadores de Trump. A tese do leitor hipossuficiente. Na prática, a lógica group-thinking, o Times como um veículo, diz Bennet, “onde a elite progressista dos Estados Unidos fala consigo mesma sobre um Estados Unidos que não existe realmente”. Foi a mesma percepção de outra editora do Times, Bari Weiss. Sua carta de demissão correu o mundo. E foi bem mais direta. Disse que havia cansado do jornalismo “engajado”, que, em vez de “desafiar os leitores”, passou a “buscar cliques com o 4 000º artigo dizendo que Trump é o grande perigo para o mundo”.
As histórias de Bennet e Bari Weiss falam de um estranho divórcio que marca a nossa época. Observem os dados: 38% dos americanos se identificam como conservadores, em questões sociais; 29% se dizem “progressistas”. Nas questões econômicas, 44% são conservadores, contra 21% progressistas (dados do Gallup). Observem agora o que se passa com a imprensa. Pesquisa recente feita na Universidade Syracuse mostrou que a simpatia pelo Partido Democrata, entre jornalistas, é dez vezes maior do que pelo Partido Republicano. Para ser preciso: 36,4% para o lado dos democratas e apenas 3,4% para o lado republicano (eram 18%, no início dos anos 2000). De um modo geral, o que se passa com o The New York Times não é a exceção. No Brasil, pesquisa realizada na Universidade Federal de Santa Catarina, reportada em ótima matéria do Poder 360, mostrou que 80,7% dos jornalistas se posicionam à esquerda ou centro-esquerda, contra apenas 4% à direita, lato sensu.
Não é preciso fazer nenhum juízo de valor aqui. É um direito das pessoas pensarem isso ou aquilo. Ponto-final. A questão é observar o divórcio. A desconexão entre a média do pensamento, na sociedade, e o que se passa não apenas na chamada “mídia profissional”, mas nos meios de opinião, em geral. Dito isso, talvez Bennet e Bari Weiss sejam apenas dois irrealistas. Presos a uma ideia de jornalismo que de fato se perdeu, e não apenas no The New York Times. A ideia de uma mídia apresentando fatos com alguma objetividade, e um quadro de opinião diverso. Não focado em convencer ninguém disso ou daquilo, mas permitir que o público forme sua própria opinião. Essa foi uma tese clássica do jornalismo, no século XX, posta no conhecido relatório da Comissão Hutchins, logo após a Grande Guerra. Suas conclusões diziam que o compromisso do bom jornalismo era separar a notícia da opinião, dar espaço ao contraditório e tratar sem estereótipos os diferentes grupos da sociedade. Ainda há muita gente que tenta colocar em prática essa ideia. Mas o espírito do tempo é outro. O que antes era um problema para o jornalismo, isto é, seu afastamento da “objetividade dos fatos”, se tornou um estranho tipo de virtude.
“As guerras culturais injetaram sacralidade na política”
É evidente que seria desejável um The New York Times que não demitisse seu editor de opinião pela publicação de um artigo conservador. Ou emissoras com um equilíbrio de visões, refletindo simplesmente o que somos, como sociedades abertas. Mas é improvável. As guerras culturais da nossa época injetaram uma carga de sacralidade no universo da política. Se o que está em jogo é o “fascismo”, de um lado, e o “comunismo”, de outro (parece brincadeira, mas foi exatamente o que Bennet ouviu, e não precisamos ir longe…), não há mesmo muito o que ponderar. Se são as últimas e grandes narrativas que dão conta da realidade, então está tudo bem. Vamos à guerra permanente, e às favas com idiotices como o espírito de dúvida e de investigação. É evidente que há um problema de mercado, que demanda “opiniões fortes”. “Ou então perdemos para a internet, seus youtubers e tiktokers”, escuto de um editor veterano. O negócio seria aderir ao jogo. Ao Twitter como grande editor, na frase sarcástica de Bari Weiss.
O problema é que o viés crônico faz o jornalismo perder aquela que deveria ser sua grande virtude: a vocação socrática. A capacidade de fazer as perguntas inconvenientes, contrastar o pensamento hegemônico. Lembro quantas vezes li notícias sobre pessoas banidas ou mesmo presas, no Brasil recente, sem um mísero questionamento sobre o “crime” cometido. Ou a aceitação pura e simples da censura prévia, vedada por aqui. Bennet sugere que talvez falte “coragem” à mídia. Desconfio que não. O que parece faltar é o tipo de convicção. Do jornalismo que “começa com uma consciência de que não sabe nada, em vez da crença de que sabe de todas as respostas”, nas palavras do próprio Bennet. Saudável ceticismo que não funciona para quem apagou a ambiguidade, que realmente acha que descobriu o lado certo da verdade. E por aí encerrou o jogo.
Vamos lembrar que Sócrates foi condenado por ofender os deuses. E na Apologia definiu como sua talvez única virtude reconhecer que “nada sabia”. Há um espírito que se perdeu, aí, nesta época de certezas e dedos na cara. Corrigir o divórcio, neste sentido, não é a adesão a essa ou aquela corrente de opinião. Mas o reconhecimento simples de que somos uma sociedade plural e que há um valor nisso que não deveríamos perder.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877