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Fernando Schüler

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O poder e a lei

Minha visão é simples: devíamos renovar o pacto republicano

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 ago 2024, 15h21 - Publicado em 24 ago 2024, 08h00
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  • “Beleza, só não envia a foto que dá pra ver que foi obtida pelo TSE”, diz a autoridade, em um daqueles diálogos. Havia uma manifestação na frente de um evento com autoridades brasileiras em Nova York. Protestar na frente de um evento com figuras públicas nunca foi crime em uma democracia. Ao contrário, é uma expressão da própria democracia. Mas não tem jeito. Nosso “estado de direito” estava lá, mandando ver. Tira foto, pega o tuíte do cantor que está divulgando, faz um relatório, bloqueia. Incrível isso. A coisa era feita por um tribunal, mas devia “aparecer” como sendo de outro. As eleições haviam terminado, o funcionário encarregado de cumprir as ordens vacilava, dizendo que não havia “menções às urnas, pleito ou instituição”, e que por isso poderia ser esquisito a Justiça Eleitoral tratar daquilo. Mas tinha a ordem lá de cima, o que fazer? Daria para ter ido um pouco adiante, perguntado qual era exatamente o “crime” cometido por aquelas pessoas. Mas seria demais. E muito “inglês”, como me sugeriu, com algum bom humor, um colega.

    O ponto aqui são as relações entre a lei e o poder no Brasil de hoje. O ministro Barroso acerta quando diz que “em cada país se aplica a lei daquele país. Está no Brasil, tem que cumprir as regras do direito brasileiro”. Barroso se referia à questão de o X, o antigo Twitter, cumprir ou não ordens que considera ilegal, vindas de uma autoridade brasileira. O problema aqui é outro: e se for a autoridade que não cumpre as “regras do direito brasileiro”? Isso não deveria acontecer. Mas e se tivermos que dar a mão à palmatória, ecoando o incômodo daquele funcionário da Justiça Eleitoral, e reconhecer que foi exatamente isso que aconteceu, em ampla escala, no Brasil dos últimos anos? O que fazer? Reconhecer, por exemplo, que não há lei legitimando os banimentos de indivíduos “de ofício”, da internet, e a prática em larga escala da censura prévia. Não se trata de saber se alguém vai agir como a Rosa Parks, se recusando a dar o lugar a um branco naquele ônibus em Montgomery por achar aquelas leis injustas e contrarias à Constituição. Ou levar a ferro e a fogo a sentença do ministro Maurício Corrêa, nos anos 1990, dizendo que “ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal”. Trata-se apenas de pensar. Preservar a distância. Entender que o poder pode obrigar à obediência. Mas jamais tomar conta da cabeça das pessoas.

    Por esses dias, escutei de um jornalista que estaríamos vivendo em um “estado de exceção”. Algo que, na visão ele, era necessário dois ou três anos atrás, mas que agora teria perdido a utilidade. Há uma montanha de problemas aí. Há dois anos, um grupo de pessoas foi banido (sete pessoas, para ser preciso), com direito a contas bloqueadas e ação policial, porque uma delas, em um papo-furado no WhatsApp, sugeriu preferir um golpe ao candidato A ou B. Revelar preferência por uma ditadura, uma monarquia absoluta ou um governo ao estilo Kim Jong-un nunca foi um crime em nosso ordenamento jurídico. Qual teria sido exatamente a “necessidade” daquela atitude? Ou isso tudo não passou de uma imensa mesquinharia e abuso de poder? Quem exatamente decide sobre isso em um Estado republicano? A mesmíssima pergunta surge agora. Qual seria exatamente o critério para desmonetizar uma revista? “Só encontrei matérias jornalísticas”, diz, de um jeito prosaico, o investigador. Mesmo assim, a revista foi desmonetizada. Devido processo? Tipificação legal? Direito ao contraditório? Bobagem. No fundo, é essa teoria do nosso jornalismo simpático ao “estado de exceção”. Não importa do que se trata. Mover uma operação internacional para prender um humorista irrelevante no Paraguai? Banir o PCO, com seus 120 likes? Ou quem sabe o youtuber Monark, com sua defesa de jardim de infância de uma regra da Primeira Emenda americana? Quem dirá se qualquer esquisitice dessas era crucial para salvar nossa democracia?

    Outro problema é a ideia ingênua de que um “estado de exceção” possa ser desligado, de uma hora para outra, quando alguém achar que ele já tenha cumprido sua função. A tese é ingênua por muitas razões. A primeira delas é bastante simples: porque o poder é sedutor e sua imaginação é fértil. Para saber disso, é só observar o caso brasileiro. Por volta de março de 2019, o “ Inquérito das Fake News” era necessário pelos “ataques” à Suprema Corte. Depois, novos inquéritos eram necessários em razão das “milícias digitais”, das “fake news” sobre a pandemia, da “desinformação” sobre o processo eleitoral, sobre um “desfile de tanques”, em Brasília, e logo aquela frase patética do presidente, seguida de seu pedido de desculpas, em um 7 de setembro. E logo em razão da “desordem informacional”, nas eleições, e dos “discursos de ódio”, e dos “ataques” ao sistema de votação. E logo da “tentativa de golpe”, naquele domingo de janeiro. E ainda agora tudo se renova diante da “mais terrível de todas as ameaças, que vem do uso da inteligência artificial”. E por aí seguimos. Pela simples razão de que um “estado de exceção” não demanda apenas que se aceite a quebra das normas do estado de direito. Demanda também as justificativas produzidas por parte de quem detém o poder. Algo que por muito tempo foi designado, na teoria política, pelo conceito elegante das “razões de Estado”.

    “Minha visão é simples: devíamos renovar o pacto republicano”

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    É possível pensar que a simpatia pela ideia de “estado de exceção” seja um traço comum na vida brasileira, à esquerda e à direita. Dias atrás um bom jurista me lembrava sobre isso. “O que pretendiam exatamente aquelas pessoas acampadas à beira dos quartéis depois das eleições?” Não era exatamente um “estado de exceção provisório”? A tese nebulosa sobre a utilidade de uma quebra do estado de direito em nome de sua própria preservação? Quem sabe vai aí uma herança. A sedução do “golpismo democrático” foi uma constante na República brasileira de 1946 a 1964. Muita gente, entre as quais me incluo, imaginou que a transição dos anos 1980 havia enterrado de vez aquela tradição. Mas talvez tenhamos sido um pouco otimistas. Talvez a sedução do “estado de exceção benevolente”, com suas boas razões, seu suave e bom ditador, ainda esteja por aí, como um espírito que não desencarna.

    Minha visão é simples: devíamos renovar nosso pacto republicano e não abrir mão disso. A democracia deve ser defendida lançando mão de suas próprias regras. Ponto. E não há demonstração nem evidência de que isso não poderia ter sido feito no Brasil dos últimos anos. Norberto Bobbio chamou de “governo dos homens” aquele que funciona não pelo respeito à lei. Mas pela presunção de que a lei é boa porque “os governantes são sábios”. Porque eles eventualmente “sabem” quando e como é necessário produzir exceções à regra que todos definimos na democracia. Presunção tola. Uma democracia liberal não conhece atalhos. É essa a lição que a vida brasileira vem nos oferecendo, nos anos recentes, e que deveríamos aprender de uma vez por todas.

    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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    Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907

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