É um “psicopata”, disse Lula, em sua entrevista para a Band, na outra semana. O presidente já havia chamado seu adversário de nazista, fascista, genocida, mas agora lhe atribuía um transtorno mental. Minutos depois, na mesma entrevista, pregou o “amor”, e disse que é preciso “superar o ódio neste país”. Bolsonaro não ficou longe. Desde o seu discurso de posse, há quatro anos, chamou seus adversários de bandidos, comunistas, “nove dedos” e uma fila enorme de xingamentos. Não me recordo de ouvi-lo pregando o amor. Até procurei, mas não encontrei. Se alguém achar, posso retificar aqui. Apoiadores de ambos os lados de nossa rinha de galo política não gostam muito de ler coisas assim, mas a verdade é que nenhum de nossos dois maiores líderes tem o mais remoto interesse em pacificar o país, nem combater o “ódio”, seja isto o que for. De minha parte, não gostaria que fosse assim. Quem me lê aqui sabe de minha insistência em temas como o pluralismo, a tolerância, a “mitezza”, palavra usada pelo grande Norberto Bobbio para se referir à virtude da serenidade, na política. O fato é que minha opinião conta muito pouco, se é que conta. Quem de fato dá as cartas, no jogo político brasileiro, está interessado na guerra. Tivessem poder para isso, não duvido que nossas duas grandes tribos políticas mandariam calar, prender (se não coisas piores) seus respectivos inimigos. Como sair dessa enrascada? Por ora, não vejo muita luz no fim do túnel, mas chegará o tempo em que descobriremos.
O que acho mais curioso, nisso tudo, é o duplo padrão. O sujeito acha um completo horror quando o seu presidente-inimigo diz uma fake news. Mas quando o presidente-amigo diz uma mentira chapada, do tipo “a economia não cresceu no ano passado”, ele acha legal. E que se alguém desmentir é porque “está do outro lado”. A última onda do duplo padrão brasileiro parece ser o do “combate ao discurso de ódio”. Ainda agora o governo federal instalou sua comissão para tratar do tema, que deve ser tornar uma “política de Estado”, segundo o ministro dos Direitos Humanos. Nenhuma crítica aos integrantes da comissão, não é esse o ponto. Ela por óbvio tem um viés, como teria se o governo anterior fizesse algo nessa linha. E é por aí que se iniciam os problemas. Se poderia pensar em um grande entendimento nacional, com gente expressando divergências reais de opinião, promovendo valores como a tolerância? É evidente que sim, mas não é do que se trata. A primeira pergunta embaraçosa: quem tem o poder de dizer o que é ou não um discurso de ódio? Susan Benesch, que dirige o Dangerous Speech Project, em Harvard, define alguns traços comuns do discurso de ódio. Um deles é a “desumanização”. “Referir-se às pessoas como insetos ou animais”, diz ela. Os nazistas costumavam chamar judeus de “ratos”, e os hutus, no genocídio de Ruanda, chamavam seus inimigos de “baratas”. No Brasil recente, virou arroz com feijão chamar seus inimigos de “gado” ou “jumentos”. Tempos atrás testei essas definições em grupos com distintas visões. Cada qual foi seletivo, achando que seu animal favorito para associar os outros nada tinha a ver com o ódio.
É perfeitamente possível impor limites à liberdade de expressão. O Brasil, por exemplo, em 1989, criminalizou a injúria racial e o uso da suástica como propaganda nazista. O ponto é que isso deve ser feito com parcimônia, no Congresso, com uma clara tipificação legal. E sua aplicação deve ser objetiva, válida para todos, vedada a censura prévia. No Brasil atual cometemos todos os pecados: censuramos previamente, dispensamos solenemente o devido processo, inventamos crimes a partir de decisões idiossincráticas do Judiciário, com base em teses vagas sobre “não dizer a verdade” ou “ameaçar a democracia”. E mais: abrindo sempre mais o leque interpretativo e relativizando mandamentos constitucionais, como a inviolabilidade de parlamentares em suas “opiniões, palavras e votos”. Tudo isso sob o transe político que invadiu um universo em que jamais poderia ter ingressado: o mundo das leis e das instituições de Estado, como é o Judiciário. Todos esses erros são antigos. Eles atendem à velha sedução do que Herbert Marcuse definiu, nos anos 60, como a “tolerância repressiva”. Em nome da “democracia real”, era preciso ser intolerante com quem “impede uma existência sem medo ou miséria”. O argumento sugere um sujeito demiúrgico da verdade. Só eu defino os limites da tolerância, e partir daí disponho não só do direito de calar, mas de fazê-lo com um estranho senso de virtude. George Orwell decifrou o grande truque: faça as piores coisas, mas convença as pessoas de que você está agindo pelas melhores razões. Era assim que, em sua distopia, o ministério da paz fazia a guerra, e O’Brien torturava Winston Smith para salvá-lo de um mundo em extinção.
“Pode demorar, mas renunciaremos ao desejo de censurar”
Se alguém realmente quiser combater o discurso de ódio, algumas sugestões. A primeira: dê o exemplo. Comece arrumando a própria cama, como diria Jordan Peterson. Pare você mesmo de dar discurso de ódio e fazer de conta que está pregando o amor e a pacificação. A segunda é: aprenda a escutar as pessoas e ideias que você realmente odeia, e tente agir com empatia. Há uma penca de pesquisadores tratando da “teoria do contato”. A tese de que é preciso conviver, olhar a face do rosto, como dizia Emmanuel Levinas, com seu jeito poético, para que se gere a empatia (contra a qual conspira a frieza do mundo digital). Por fim, isso deve ser feito no âmbito da sociedade, não do Estado. E muito menos pelo Poder Executivo, transitoriamente conduzido por um grupo político, que deve atender a regras objetivas de impessoalidade e jamais arbitrar sobre direitos individuais.
No rastro da explosão de ideias e dissenso produzida pela revolução de Gutenberg, no século XV, nossos antepassados europeus se dedicaram a mais de dois séculos de guerra, queima de livros, bruxas e hereges. Elas também lutavam pela verdade, e é possível pensar que suas divergências girassem em torno de temas mais graves do que os nossos. A duras penas, fomos aprendendo. Um dos primeiros foi Erasmo. Ele entendeu as coisas elementares: que a força era incapaz de mover a consciência, que era preciso reviver Sócrates e sua crença no diálogo. E que a censura e a perseguição eram apenas um tipo de tolice, própria daqueles que “cegos pelo amor-próprio, tomam para si, sem merecê-lo, todo o mérito que injustamente negam aos outros”. Agora nos perdemos novamente, em meio à revolução tecnológica. Somos os tolos da história. Fica aqui o meu prognóstico: pode demorar algum tempo, mas aprenderemos. Como nossos antepassados, em algum momento renunciaremos ao desejo de censurar e prender quem pensa diferente. Espero apenas que até lá nossos pequenos inquisidores não produzam grandes estragos, mesmo que, confesso, não seja tão otimista.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832