Grafiteiro revela como o K-pop impulsionou impeachment na Coreia do Sul
Leodav fez a obra 'O grito das garotas faz a mudança acontecer' que representa momento atual de protestos que varrem o país

A intensa manifestação popular que levou à prisão o presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol, foi fortemente influenciada pela K-cultura. Jovens, munidos de bastões luminosos, tomaram as ruas da capital entoando canções de seus ídolos do K-pop. Inspirado nesse movimento, o grafiteiro sul-coreano LeoDav, que expôs no Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 2024, criou o painel “O grito das garotas faz a mudança acontecer”. A obra retrata, segundo LeoDav, a coragem e a paixão das mulheres jovens de Seul, que pediram por Justiça e Paz.
No dia 4 de dezembro de 2024, como se sabe, o presidente Yoon Suk-yeol declarou lei marcial na Coreia do Sul. Teve que voltar atrás menos de 24h depois. No dia 14 de janeiro, ele teve a prisão decretada. O julgamento do impeachment do presidente entra em fase final essa semana. Duas audiências estão marcadas para hoje e para quinta-feira.
Não é a primeira vez que Leodav retrata lutas políticas em suas obras. Em 1º de janeiro de 2019, o artista desenhou famosos lutadores sul-coreanos pela independência, como o mártir ativista Yu Gwan-sun e o poeta Yun Dong-ju, nas paredes dos bairros de Samcheong-dong e Sinchon, em Seul. A iniciativa foi feita para marcar o centenário do Movimento de Independência de Primeiro de Março e o estabelecimento do Governo Provisório Coreano em Xangai. Durante o evento, Leodav apresentou uma performance de pintura ao vivo dos icônicos óculos do ativista pela independência Kim Gu (1876-1949), na qual ele pintou a dedo o número 100 usando os óculos de Kim.
“Embora eu nunca tenha vivido pessoalmente o terror da lei marcial ou o peso de uma ditadura, aprendi sobre esses horrores por meio da história. No entanto, como pai, experimentar, agora, um momento assim ao lado dos meus filhos foi algo que me abalou profundamente. No dia que Yoon Suk-yeol decretou lei marcial, meus filhos me disseram que estavam com muito medo. Eu também estava muito abalado”.
Para falar sobre todo o processo, o artista LeoDav concedeu uma entrevista exclusiva para a nossa coluna. Leia abaixo:
Você acha que as manifestações tiveram influência na prisão do então presidente Yoon Suk-yeol ?
Acredito que as manifestações do povo têm grande influência no andamento rápido e legítimo dos procedimentos conduzidos pela ‘Corruption Investigation Office for High-ranking Officials’, juízes e dos parlamentares.
Os protestos foram espontâneos ou organizados?
Inicialmente, as manifestações espontâneas abriram o caminho. Várias organizações colaboraram para garantir a segurança e a ordem, criando assim protestos da cultura que está sendo denominado como o “protesto de velas”.
Os protestos foram rejuvenescidos pelos fãs de k-pop?
Havia muitas opiniões de que a cultura de manifestações na Coreia era antiquada. A maioria dos protestos era organizada e frequentada por pessoas na faixa dos 50 aos 70 anos. Pessoalmente, quando participava de manifestações com artistas veteranos que realizavam ações artísticas, eu frequentemente sugeria que era necessário rejuvenescer esses eventos. Argumentava que, se a cultura de protesto atual permanecesse inalterada, seria difícil para as gerações mais jovens se identificarem com ela. Na maioria das vezes, quando eu participava, as pessoas da minha faixa etária, os quarentões, acabavam sendo o grupo mais jovem presente.
Como foi a inclusão dos bastões luminosos?
No primeiro protesto em frente à Assembleia Nacional após a declaração da lei marcial, eu imaginava que veria apenas velas ou velas LED e que as músicas tocadas seriam as tradicionais canções populares antigas dos movimentos sociais. Como esperado, a maioria das pessoas mais velhas comprava velas ou velas LED vendidas no local. No entanto, fiquei surpreso ao ver jovens nas faixas dos 10, 20 e 30 anos segurando bastões luminosos de K-pop em suas mãos enquanto se reuniam para o protesto. Foi nesse momento que senti que algo novo estava começando. Naquela mesma noite, do palco principal do evento, além das canções populares tradicionais, músicas populares entre os jovens, adequadas ao espírito da época, começaram a tocar. Em questão de instantes, o ambiente pesado da manifestação se transformou em uma atmosfera fervorosa e energizada.
Os jovens foram bem recebidos?
Muitas das minhas preocupações de que as gerações mais jovens não participariam mais das manifestações ou não se interessariam por elas desapareceram instantaneamente. Através da música, tivemos a experiência de todas as gerações se unindo novamente. Quando a música de K-pop começou a tocar no protesto, vi que os participantes mais velhos não demonstraram rejeição, mas celebraram o nascimento de uma nova geração, compartilhando o momento de empatia e diversão juntos. Foi uma mudança surpreendente, e isso me fez perceber que nossas preocupações eram excessivas. Senti uma forte certeza de que a Coreia do Sul, com suas diversas cores, está se unindo para um futuro brilhante. Após o primeiro protesto, a partir do dia seguinte, muitos dos veteranos que antes carregavam velas começaram a perguntar nos grupos de mensagem onde poderiam comprar bastões luminosos. Logo, quase todos começaram a participar das manifestações com bastões de apoio e músicas variadas, criando um momento de empatia e união.
Por que você prestou homenagem para as mulheres em sua obra sobre o momento político?
Eu fiz a obra “O grito das garotas faz a mudança acontecer”, que presta homenagem à coragem e a paixão das mulheres jovens nas ruas de Seul, na Coreia do Sul, que clamaram por justiça e paz. Com um bastão de apoio amarelo com a estrela do ídolo que amam em uma mão, e um bastão azul simbolizando a paz na outra, as meninas estavam determinadas a transformar o mundo em um lugar melhor. Esta obra em estêncil vai além de uma simples ação política, capturando um momento simbólico em que a juventude rompe as barreiras culturais e sociais e levanta sua voz.
Você planeja continuar o movimento até que o processo de impeachment seja concluído?
Sim. Continuarei até que o impeachment seja completamente concluído pelo Tribunal Constitucional.
Como se sentiu quando o então presidente decretou lei marcial?
Ah… O dia 3 de dezembro foi uma noite comum. Estávamos em casa com meus dois filhos, que frequentam a escola primária, assistindo a vídeos de game que eles gostam no YouTube pelo computador. De repente, meu manager entrou em contato perguntando se eu estava acompanhando as notícias. Foi então que, junto com as crianças, assistimos à transmissão ao vivo da declaração da lei marcial no YouTube.
Em novembro de 1979, o mês em que nasci, foi uma época em que a Coreia estava enfrentando um período de grandes mudanças logo após a morte do ditador, o presidente Park Chung-hee. O Levante Democrático de Gwangju, que aconteceu no ano seguinte, também fazia parte de histórias que eu conhecia apenas pelos livros da escola, filmes ou romances, pois ocorreu quando eu ainda era muito novo.
Na minha infância, as exposições fotográficas e os vídeos do Levante Democrático de Gwangju em 18 de maio foi um grande choque para mim. Mais tarde, já na universidade, e até hoje, essas imagens ainda me causam um impacto enorme. Embora eu nunca tenha vivido pessoalmente o terror da lei marcial ou o peso de uma ditadura, aprendi sobre esses horrores por meio da história. No entanto, como pai, experimentar um momento assim ao lado dos meus filhos foi algo que me abalou profundamente. Naquele instante, meus filhos me perguntaram: ‘Papai, o que é lei marcial?’
‘Vai ter guerra? Papai, estou com medo…’. Eu também estava profundamente abalado, tentando acalmá-los enquanto passava a noite inteira acompanhando as notícias. Mesmo agora, ao relembrar aquele dia, sinto arrepios. Foi uma noite verdadeiramente assustadora.

Como está sendo protestar no inverno rigoroso em Seul?
Quanto mais participo das manifestações, mais fico impressionado. Há pessoas enviando ônibus para ajudar os manifestantes a suportarem o frio, food trucks oferecendo refeições quentes, e outras que fazem pré-pagamentos em cafés ou restaurantes próximos para que os participantes possam se aquecer e se alimentar gratuitamente. Além disso, por ser uma participação voluntária, todos estão enfrentando dificuldades, mas perseveram juntos, continuando a atravessar este momento desafiador.
Qual é a importância de artistas participarem desse momento político?
Como no caso da música K-pop usada nas manifestações, a cultura tem o poder de criar uma enorme empatia que transcende as gerações. Uma pintura, uma música, um romance ou filme, poemas, entre outras formas de cultura, são criadas e compartilhadas junto com os cidadãos que participam das manifestações. Elas não só geram empatia, mas também incentivam, confortam e proporcionam a força necessária para que o movimento continue e se mantenha vivo.
Qual é a função dos artistas nos protestos?
Acredito que os artistas têm a missão de registrar os tempos em que vivem. Embora eu sinta muita alegria ao trabalhar com temas como “Love camo”, “Tiny Riot (cartoon)” ou homenageando os herois da luta pela independência, acredito que a arte voltada para o progresso social é a mais bela e a mais necessária para o momento. Espero que não ocorram mais eventos como este, mas se surgirem outras questões, planejo continuar expressando minha arte e participando ativamente das manifestações, levando a arte como forma de ação e engajamento.
Vocês receberam apoio da população?
A maioria das pessoas envia mensagens de apoio. Às vezes, há quem diga que os artistas devem se limitar à arte, mas assim como os políticos não falam apenas sobre política, acredito que os artistas, como cidadãos da Coreia do Sul, também têm o direito de se expressar e falar sobre os assuntos que afetam a sociedade. A arte é uma forma poderosa de participação e reflexão sobre o momento histórico em que vivemos.