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Intervenção

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“A situação de um ator da Globo”: um caso de ressentimento social

Esse monstro moderno se fez ouvir pela voz do anônimo que, no infame vídeo gravado em Pernambuco, tripudia do vexame de Fábio Assunção

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jun 2017, 18h08 - Publicado em 29 jun 2017, 21h45

Gravado em Arcoverde, Pernambuco, o vídeo começa com Fábio Assunção caído, muito literalmente, na sarjeta. Depois ele se ergue, trôpego, amparando-se na porta de um carro, sob o coro de insultos (“otário e “vacilão” são os mais brandos) dos populares que o cercam. Ele mesmo chama um homem que o observa mais de perto de “palhaço”. Tenta acertar o tal palhaço, mas é um golpe débil, patético, com a mão aberta e o braço lento, do qual o outro facilmente desvia. A cena, tão vulgar, tão comum, não mereceria comentário, não fosse pela voz que se ouve a certa altura da gravação. O homem que fala não aparece em cena; talvez fosse ele com o celular na mão, registrando o episódio. O sujeito diz, por duas vezes, a mesma frase:

“Olha a situação de um ator da Globo.”

A situação de Fábio Assunção não era mesmo bonita. Mas situações feias não são exclusividade de atores ou de funcionários da emissora carioca. Alcoolismo e dependência química também afligem serralheiros, advogados e jornalistas (cito três profissões aleatórias, e poderia listar virtualmente todas as ocupações conhecidas da humanidade). O anônimo de Arcoverde, porém, fez questão de especificar, com inequívoco desprezo, a profissão e o empregador do homem na sarjeta: ator, e ator da Globo.

Poderia se pensar que a frase esconde alguma motivação ideológica, que tem algo a ver com a tão propalada “polarização” dos nossos dias da crise. A Globo, afinal, há muito tempo é detestada pela esquerda, e isso não está para mudar, como atestam as recentes agressões verbais de delegados do PT contra Miriam Leitão. Mas a motivação política é, aqui, bem improvável. Não se ouviram, no sertão de Pernambuco,  os xingamentos costumeiros do alto debate público nacional. Nem golpista, nem petralha: Fábio Assunção era apenas ator da Globo, e olha a situação em que se encontrava!

Não sei se fantasio, mas penso ouvir uma alegria degenerada, um prazer perverso na voz do anônimo. A frase repetida carrega uma mesquinho espírito de desforra contra o homem de sucesso em momento vexaminoso:  vejam só a celebridade, o galã, o astro da emissora líder de audiência, espojando-se em uma sarjeta interiorana, destemperando-se contra populares e policiais, agindo como poderia agir um serralheiro, um advogado, um jornalista qualquer.

“Olha a situação de um ator da Globo.” Eis aí a voz de um monstro moderno: o ressentimento social.

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Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues: um Raskolnikov exige  salário (J. Antônio/AJB/Dedoc)

Nelson Rodrigues entendia de ressentimento social. Viveu a penúria, e por isso sabia que não é a mera pobreza que motiva esse sentimento. Ao contrário, a pobreza absoluta talvez anestesie a capacidade de odiar o vizinho que faz mais sucesso e mais refeições por dia. Em seu estupendo livro de memórias, A Menina sem Estrela, Nelson conta que, nos anos 30, quando trabalhava sem ordenado para Roberto Marinho, tinha pelo patrão uma devoção subserviente. Bastou se tornar assalariado de O Globo para detestar o magnata e tudo o que ele acumulara: “Odiei a sua casa, as suas varandas, os seus automóveis, os seus ternos, os seus cristais”. Nelson Rodrigues tornou-se, em sua própria e saborosa expressão, “uma espécie de Raskolnikov de Roberto Marinho”.  Pois, segundo ensina o memorialista, um Raskolnikov exige pagamento: “O ódio que leva o sujeito a matar uma usurária, ou a dinamitar um czar, precisa de um ordenado”. A referência ao personagem central de Crime e Castigo está muito bem colocada. Raskolnikov, estudante e assassino, encarna certa variedade intelectual do ressentido. Dostoievski é um grande estudioso do ressentimento em suas variadas expressões, da humilhação impotente do “homem do subterrâneo” ao ódio surdo que fermenta radicalismos políticos.

Por si só, o ressentimento não tem sentido político, mas pode se tornar um instrumento de mobilização de fanáticos em potencial – sejam aqueles que dinamitam o czar, como dizia Nelson Rodrigues, ou esses que atropelam turistas em Londres. Um naco considerável do discurso esquerdista sobre “justiça social” ampara-se sobre o ressentimento. É essa emoção primitiva que permite separar “nós”, oprimidos, de “eles”, opressores da elite malvada. Não digo com isso que o ressentimento não mostre seu focinho abjeto na conversa mais agressiva da outra ponta do espectro ideológico. Viceja, sim, uma funda e venenosa inveja na estúpida expressão “esquerda caviar” e na vigilância cerrada que tantos blogueiros de direita fazem sobre o modelo de celular ostentado por esquerdistas famosos. Mas há uma diferença notável: só a esquerda converteu o ressentimento social em um monumental edifício teórico. Vamos combinar que esse negócio de “consciência de classe” é só uma perífrase pernóstica. É do ódio aos ricos, e não da solidariedade entre os pobres, que se extrai a matéria-prima das revoluções.

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O ressentimento, disse acima em um arroubo de retórica duvidosa, é um monstro moderno. É preciso matizar a afirmação. A Revolução Francesa será talvez o nascedouro de sua encarnação contemporânea, mais feroz, mais bestial. O ressentimento, porém, não brotou das barricadas ou da guilhotina. Terá existido desde as cavernas. Ocorre apenas que ele ganhou dimensões patologicamente hipertrofiadas nas sociedades modernas, que já não condenam as pessoas a morrer na mesma circunstância social em que nasceram. Quando pais indulgentes,  escolas progressistas, comerciais de TV, livros de autoajuda, gurus motivacionais, melodramas hollywoodianos e um sem-número de demagogos prometem uma vida de possibilidades ilimitadas, é inevitável que cultivemos uma renitente amargura contra um mundo que não nos recompensa na justa medida do nosso mérito. Ou do mérito que imaginamos ter.
Que contraste com os antigos! Recuemos, por um momento, da Arcoverde dos anônimos com celular, do Rio de Nelson Rodrigues e da São Petersburgo de Raskolnikov até “a glória que foi a Grécia e a grandeza que foi Roma”, como diz o verso do moderno (portanto ressentido) Edgar Allan Poe. Na Antiguidade, mal erguia sua carantonha grotesca, o ressentimento social era logo recolocado em seu lugar. Tomemos um raro episódio de mimimi popularesco na Ilíada. No Canto II do poema, os gregos de longa cabeleira estão inquietos depois de nove anos de cerco a Troia. Ulisses, como delegado de Agamenon, o comandante dos helenos, percorre o acampamento da soldadesca, distribuindo pancadas pedagógicas entre os que expressam descontentamento (“assim refreia a chusma”, lê-se na tradução clássica de Odorico Mendes). Não pensassem os peões que serão todos reis, pois é preciso ouvir os que nos são superiores, dizia Ulisses. (A democracia, ao que consta, foi invenção dos gregos, mas só apareceu uns bons séculos depois de Homero.) Então um soldado impertinente, Tersites, atreve-se a discordar do herói de Ítaca. Homero descreve Tersites em termos pouco lisonjeiros: feio, com a cabeça coberta de tufos de cabelo grisalho, ombros curvados, coxo – e covarde. Essa lamentável figura reclama que os tesouros das cidades saqueadas – bronze, ouro e, mais importante, mulheres! – estão todos nas tendas de Agamenon, enquanto o soldado raso fica só com o sofrimento e a morte. Ulisses manda Tersites calar a boca, ameaça despi-lo e espancá-lo se voltar a difamar Agamenon, e arremata a repreensão com uma paulada, que abre um vergão nas costas do queixoso. Uma lágrima grossa rola do olho do humilhado. O ressentido teve seu momento e já pode sair de cena. Tersites não volta a aparecer na Ilíada.

A cena choca nossa melindrada sensibilidade contemporânea, tão afinada às cantilenas igualitárias. Não há como modernizá-la, a não ser em um registro de paródia ligeira. Mais ou menos assim: os trabalhadores acampados ao redor das inexpugnáveis muralhas de Troia formam uma comissão para apresentar suas reivindicações a Agamenon, que não os recebe.  Ulisses vem negociar, mas não cede: diz que ali quem manda é ele, e o que ele falar está falado. Tersites, o delegado sindical, começa a falar dos direitos históricos duramente conquistados pelos trabalhadores e toma um safanão. Um companheiro filma a cena, o vídeo viraliza. Para conter a repercussão negativa na imprensa e nas redes sociais, uma nota oficial da armada grega, assinada por Agamenon mas escrita por um consultor de imagem, promete apuração rigorosa dos fatos e reafirma os padrões humanitários e o respeito da Grécia por cada um de seus colaboradores, que são todos uma só grande e feliz família corporativa. Desmoralizado, Ulisses tenta se desculpar no YouTube e é xingado no espaço de comentários. No Twitter, o troiano Heitor tripudia do inimigo: “Perdeu, playboy! #ulissesfascista”.

Longe de mim sugerir que devamos retornar à violência viril exaltada no poema de Homero. O mundo grego tinha sérias carências e inconvenientes, da escravidão ao vinho diluído com água do mar. Mas havia então farta matéria para o épico. Nosso mundinho de ressentimentos rende, no máximo, telenovelas da Globo. E olha a situação de seus heróis!

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