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Na Netflix, três grandes cineastas em um grande momento

Nunca viu “A.I.”, de Steven Spielberg, “Match Point”, de Woody Allen, e “O Plano Perfeito”, de Spike Lee? É hora de correr atrás

Por Isabela Boscov 13 mar 2018, 17h34

O Plano Perfeito: Spike Lee faz a coisa certa em um sensacional filme de roubo

No último filme dirigido por Sipke Lee que merece a classificação “ótimo”, há na verdade vários planos em andamento. O plano do detetive Keith Frazier (Denzel Washington) é negociar com os autores de um roubo a banco em Manhattan a libertação dos reféns, e assim sair da geladeira em que foi colocado por causa de uma acusação de corrupção. O plano de Madeline White (Jodie Foster), que transita em altas rodas de influência, é impedir que os assaltantes tirem de dentro do cofre um documento capaz de arruinar o dono do banco (Christopher Plummer) – e que documento é esse nem ela mesma sabe. E o plano dos quatro ladrões, liderados pelo eficiente Dalton Russell (Clive Owen), é misterioso. Montanhas de dinheiro, jóias, papéis: nada do que é visível no interior da agência no coração de Wall Street, em Nova York, parece despertar a atenção deles. Algo ali, porém, deve ser de seu sumo interesse, ou não teria merecido uma organização tão meticulosa.

O Plano Perfeito
O Plano Perfeito (Universal/Divulgação)

Filmes medíocres de assalto lidam com generalidades – o refém que passa mal, o outro que tenta ser mais esperto que os criminosos, o ladrão que perde o controle. O Plano Perfeito, porém, lida apenas com especificidades. Primeiro, no conhecimento íntimo que Spike Lee tem dos nova-iorquinos e da maneira como eles andam, agem e falam: da paquera entre um oriental e uma italiana exuberante, na fila do banco, à perua albanesa que aparece com uma sacola cheia de multas de estacionamento, mesmo os tipos e situações mais secundários não soam inventados. Parecem tirados, na hora, do meio da multidão. O Plano Perfeito é deliciosamente específico também nos detalhes do assalto, cujo sucesso consiste em tornar todas essas pessoas tão diferentes que convivem em Nova York numa só – a primeira providência de Dalton é distribuir aos quase cinqüenta reféns macacões e máscaras idênticos aos que ele próprio e sua gangue estão usando, de forma que ninguém mais saiba quem é quem (e não é só isso que a série La Casa de Papel rouba descaradamente do enredo de Lee). O que há de inimitável em O Plano Perfeito, contudo, são seus protagonistas – três inteligências notáveis, diferentes entre si e dedicadas a superar umas às outras.

O PLANO PERFEITO
(Inside Man)
Estados Unidos, 2006
Direção: Spike Lee
Com Denzel Washington, Clive Owen, Jodie Foster, Christopher Plummer, Willem Dafoe, Chiwetel Ejiofor
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Match Point: a tragédia grega de Woody Allen

Chris (Jonathan Rhys-Meyers) não apenas lê Crime e Castigo; ele o estuda. Chris está se preparando para ingressar em círculos mais cultivados – e, ao que parece, está também buscando uma forma de burlar a equação proposta pelo título do clássico de Fiodor Dostoievski. Chris foi um bom tenista, que jogou com os melhores. Mas não se equiparou a eles, e precisa agora encontrar outra fórmula de ascensão social. Empregado como instrutor num exclusivíssimo clube de Londres, ele se aproveita da aproximação de um “pato” promissor. Tom (Matthew Goode) é milionário, desocupado e, de maneira muito benigna, condescendente. Nem ele, nem seus pais, nem sua irmã Chloe (Emily Mortimer) fazem ideia da urgência que a ambição pode fomentar. Chris é hábil em esconder esse sentimento e mascará-lo em gratidão (aos pais de Tom, que o tomam sob suas asas), amizade (por Tom) ou amor (por Chloe, com quem logo se casa). Não exatamente por mau-caratismo, mas pelo desejo de forjar um destino onde não parece haver nada. Nem tudo na trajetória de um homem, porém, pode ser calculado. Para Chris, o imprevisto surge na forma da americana Nola (Scarlett Johansson), noiva de Tom, atriz sem carreira e mulher irresistível. Chris acha que pode jogar dos dois lados da quadra. É claro que não pode. Tudo, então, vai evoluir para a fatalidade.

Match Point
Match Point (BBC/Divulgação)
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Não são poucos os filmes em que Woody Allen perseguiu o efeito de colocar a plateia na posição do coro de uma tragédia grega – uma posição a partir da qual ela contempla os descaminhos dos personagens e anseia por alertá-los, sem que tenha, é claro, poder para interferir. Allen articula sua trama com uma montanha de referências tiradas da literatura, da música, da pintura e de seu próprio cinema (em especial de Crimes e Pecados), mas a exigência não é que elas sejam percebidas individualmente ou compreendidas ao pé da letra. Elas servem como pano de fundo: certos erros provêm da condição humana, e por isso os homens estão condenados a repeti-los através dos séculos, a despeito de todos os exemplos funestos que a arte imortalizou. Desde a década de 80 Allen não fazia um filme tão contundente, completo e distante do tom amesquinhado que marcou muito da sua produção da década anterior a Match Point. As veleidades humanas de que ele trata aqui são as mesmas de toda a sua obra. Sua ressonância, contudo, é infinitamente maior.

MATCH POINT
Inglaterra/Estados Unidos, 2005
Direção: Woody Allen
Com Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johansson, Matthew Goode, Emily Mortimer, Brian Cox, Penelope Wilton, James Nesbitt, Ewen Bremner

A.I. – Inteligência Artificial: amar ou não, eis a questão de Spielberg

No cenário futurista de A.I. – Inteligência Artificial, as calotas polares se descongelaram e cidades inteiras submergiram. Os sobreviventes dos países desenvolvidos preservam sua riqueza por meio de um severo controle de natalidade. A indústria cibernética encontra-se num estágio tão avançado que criou andróides para executar tarefas subalternas e servir de companhia. Seu próximo passo é criar uma máquina que também tenha sentimentos. É aqui que entra em cena o casal Monica e Henry Swinton. Eles têm um filho, mas ele está há anos em coma. Por que não reconstruir a família com um robô-menino que só sente amor e devoção? Há várias reflexões a fazer sobre essa pergunta. Uma delas é crucial: mesmo numa sociedade em que seres “orga” (de “orgânicos”) e “meca” (de “mecânicos”) convivem rotineiramente, ninguém ainda se indagou que tipo de responsabilidade um ser humano tem para com a emoção de um ser manufaturado. São, por assim dizer, as letras miúdas do contrato. E é por causa delas que David, o robô “adotado” por Monica (e magnificamente interpretado por Haley Joel Osment), será lançado na mais absoluta experiência de rejeição que se possa pensar. E olhe que, em matéria de horror emocional, a imaginação do americano Stanley Kubrick (que concebeu A.I. e o “deu” a Spielberg) voava longe.

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A.I. – Inteligência Artificial
A.I. – Inteligência Artificial (Warner/Divulgação)

Se Spielberg é o cineasta da fantasia convertida em realidade, Kubrick era o da realidade transformada em pesadelo impessoal. É fascinante (e nada acidental) que essa história tenha atraído ambos: tudo em A.I. é ambivalente, a começar por David. O pequeno robô pode ser considerado humano porque ama – ou talvez o fato de só saber amar, e nada mais, o torne essencialmente artificial. Em certo sentido, o filme fala de um menino que fará de tudo para realizar seu sonho – tornar-se um menino de verdade, como Pinóquio. Mas a crueldade e a esterilidade do mundo em que vivem os protagonistas são típicas de Kubrick. Se ele tivesse dirigido o filme, é certo que a segunda parte do enredo, em que David vagueia em companhia do robô-amante Gigolô Joe (Jude Law, excelente), teria ficado um bocado mais pesada – não que isso seja melhor ou pior. Spielberg, por sua vez, deixa-se influenciar pelo estilo frio e distante de Kubrick. Compõe cenários ora minimalistas, ora atordoantes e dá imensa importância às vozes, como era o hábito de Kubrick. A narração de Ben Kingsley é excepcional, e o tom rouco e amargo do ursinho de pelúcia Teddy, um brinquedo inteligente, é um dos lances mais criativos do filme. Em meio a tantas homenagens, Spielberg preserva sua identidade. Acaba se saindo com um dos filmes mais belos de sua carreira e um trabalho bem mais digno de ser o testamento de Kubrick do que o seu derradeiro, De Olhos Bem Fechados.

A.I. – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
(A.I. Artificial Intelligence)
Estados Unidos, 2001
Direção: Steven Spielberg
Com Haley Joel Osment, Frances O’Connor, Jude Law, William Hurt, Brendan Gleeson, Sam Robards e as vozes de Ben Kingsley, Meryl Streep, Robin Williams e Chris Rock
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