Stanton Carlisle (Bradley Cooper) tem o dom de persuadir qualquer um de qualquer coisa, mas Beco do Pesadelo (Nightmare Alley, Estados Unidos/México, 2021), já em cartaz, não tem pressa de familiarizar a plateia com a lábia de seu protagonista. Durante uns bons quinze minutos, Stan não diz palavra enquanto põe o corpo do pai sob as tábuas do assoalho, toca fogo na casa e sai pelo mundo até dar com os costados em um circo mambembe, no qual se esquiva de pagar a moeda exigida para ver o “selvagem” — na verdade, um homem reduzido a tal bestialidade pelas condições inumanas com que o tratam que, quando lhe atiram uma galinha viva, ele devora o animal ainda se debatendo. O calote de Stan, porém, não passa despercebido ao mestre de cerimônias Clem (Willem Dafoe, novamente fabuloso), que reconhece no rapaz os demônios e o desespero que, juntos ou em separado, levaram cada um dos membros do circo a se juntar à trupe. Desespero é o que não está em falta nesses Estados Unidos de 1939, exaustos pela Grande Depressão. Mas Clem detecta em Stan também a elasticidade de princípios necessária a quem quer sobreviver explorando a credulidade e a morbidez alheias e expondo em troca de alguns centavos tudo o que, no ser humano, possa ser caracterizado como anomalia ou aberração.
Stan floresce nesse novo meio, que o cineasta Guillermo del Toro, adaptando o romance profundamente desenganado que o americano William Lindsay Gresham publicou em 1946 (e homenageando a versão anterior, de 1947), recria com seus característicos detalhismo e inventividade. Na concepção de Del Toro (leia a entrevista), o circo é cheio de promessas nos seus chiaroscuros noturnos e, assim como seus integrantes, aparece gasto e cansado à luz do dia. A exceção é Molly (Rooney Mara), a jovem órfã protegida por Clem, que assombra o público com a calma com que se submete a correntes elétricas. Stan, claro, deseja Molly. Resta saber como seduzi-la, se ela não quer nada além do que já tem. Talvez a maior inspiração de Del Toro seja o modo como ele articula, para o espectador, que tem diante de si um conto moral à moda dos de Edgar Allan Poe, em que uma pessoa é sempre vítima de si mesma.
Na interpretação muito bem calibrada de Bradley Cooper, Stan é solícito, agradável. Mas tem uma nota furtiva e um interesse vivo demais na companhia da vidente Zeena (Toni Collette) e do mentalista Pete (David Strathairn, soberbo), que afoga na garrafa o medo da habilidade com que lia as pessoas e as iludia. Stan não se cansa de perguntar a Zeena e Pete os pormenores do número que eles apresentavam e de aprender com eles. É, na verdade, um discípulo excelente, tão apto quanto o mestre. E bem menos escrupuloso. Quando o circo é trocado na trama pelos ambientes mais ricos da Nova York de 1941, o contraste entre aparência e realidade se repete, dessa vez em clima noir: Stan ficou rico com seu suposto dom psíquico, mas está prestes a ser testado por uma psiquiatra (Cate Blanchett, chiquérrima mas forçada) que se propõe não só a analisá-lo, mas a se tornar sua comparsa. Pobres ou milionárias, as pessoas querem acreditar em algo — um postulado que vale para todas as pessoas, incluindo Stan.
Noturno (Trilogia da Escuridão Livro 1)
Nos filmes de Del Toro sempre há monstros. Aqui, porém, eles não são fantásticos, mas homens e mulheres que cederam à ganância, à desesperança, ao desejo de manipular ou aos demônios íntimos. Alguns vão pagar o preço antes do fim do filme, outros talvez venham a sair impunes. Para parte dos espectadores, é possível que o filme pareça lento, e é quase inevitável que uma das suas duas metades frustre em comparação com a outra. Mas, para quem achou sem vida A Colina Escarlate, ou açucarado demais o paladar de A Forma da Água, Beco do Pesadelo é uma recompensa — uma mudança de curso que leva Del Toro ao seu território mais pessoal desde o estupendo O Labirinto do Fauno.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774
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