Quem já estava por aí no começo da década de 90 não tem a menor chance de ter escapado da longa comoção que foi o caso O.J. Simpson: como, em 1994, o ex-astro do futebol americano em questão de horas virou o principal suspeito do assassinato brutal da ex-mulher dele, Nicole Brown Simpson, e do ficante dela, o garçom/ator Ronald Goldman. Durante mais de um ano, falou-se disso sem parar: da bizarra perseguição a 60 km/h nas freeways de Los Angeles, em que dezenas de viaturas de polícia viraram escolta do Ford Bronco branco em cujo banco de trás O.J. ia chorando e ameaçando dar um tiro na própria cabeça (quem dirigia era um amigão dele); do julgamento interminável, cheio de reviravoltas e de advogados se pavoneando diante das câmeras; da polêmica das luvas encontradas na cena do crime; do cabelo em estilo poodle da promotora Marcia Clark; do comportamento vacilante do juiz Ito; do racha da opinião pública – e da maneira como parte dela foi contrabandeada para dentro do tribunal pela defesa. E por aí vai, até o veredito de dar nó na cabeça. (Não estou dando nenhum spoiler, garanto.) Como uma história da qual se conhece não só o final, mas cada lance, pode render algo que pareça novo – e também palpitante, tenso, cheio de suspense? Ryan Murphy, o criador de Glee e de American Horror Story, dá a resposta em cada um dos sensacionais dez capítulos desta série, que entrou há alguns dias na Netflix.
A primeira providência de Ryan Murphy é tratar o caso como inédito: para boa parte do público, aquela para a qual os anos 90 são uma espécie de passado longínquo, ele é inédito mesmo. E para a outra parte, a que seguiu o noticiário, ele provavelmente já virou uma memória vaga, sem senso de progressão. Desde a primeira cena, então, em que um akita branco uiva sem parar por causa do cheiro de sangue e leva a polícia a descobrir os corpos retalhados de Nicole e Ronald à porta da casa dela, acompanhei tudo com a sensação de quem não sabia de nada: Murphy entende de espetáculo – com uma queda para o sensacionalismo e o camp –, mas aqui ele evita esse tipo de apelo mais fácil. Troca-o por uma escalada irresistível de ritmo e intensidade. E também por um comentário rico e muito instigante: a própria decisão de fazer a série é uma afirmação de que o importante não é recapitular em si, mas recriar para rever à luz de hoje aquilo que o julgamento e o bombardeio de mídia significaram. (Só para dar uma palinha, Los Angeles literalmente pegara fogo dois anos antes, quando quatro policiais brancos espancaram o negro Rodney King durante uma revista na rua e foram absolvidos.)
The People v. O.J. Simpson levou nove prêmios no Emmy, o Oscar da TV, e mereceu. Além do roteiro e da direção, também o elenco é fabuloso. A começar por Sarah Paulson, uma das atrizes favoritas de Murphy (esta é a nona colaboração dos dois), que faz a promotora Marcia Clark. Marcia estava passando por um divórcio medonho, tinha dois filhos pequenos e estava encarregada de um caso de complexidade colossal (daí o corte de cabelo que ela achou que seria “prático”, e que tanto foi ridicularizado). Ela e o chefe da Promotoria, Gil Garcetti (Bruce Greenwood), acharam que, com uma quantidade tão prodigiosa de provas incontestáveis, o julgamento seria uma barbada. Mas ele foi tudo menos uma barbada, e a espiral em que Marcia entra é uma coisa de assustar. É de assustar, também, a máscara plastificada que é o rosto de John Travolta como o advogado-celebridade Robert Shapiro; Los Angeles está cheia de gente assim, com essa cara esticada e estranha. Sterling K. Brown é o ator-revelação, maravilhoso como o assistente da Promotoria chamado para ser o rosto negro da acusação, que é submetido a provocações constantes pelo advogado principal da defesa, o também negro e vaidosíssimo Johnny Cochran (Courtney B. Vance), que adorava um palanque. Já o ator-surpresa é David Schwimmer: nunca gostei do Ross de Friends, mas é muito bonita a atuação dele como Bob Kardashian (o pai de Kim, Khloe etc.), amicíssimo de O.J. e o mais crédulo defensor da inocência dele – até começar a ter dúvidas dilacerantes.
Um reparo importante: Cuba Gooding Jr. não é o ator certo para fazer Orenthal James Simpson (que costumava ser chamado de “The Juice” por causa de o.j., ou “orange juice”, e também por causa da sua energia – de novo, “juice” – em campo). No começo, não dei bola para a diferença mais evidente, a da aparência física. Cuba é miúdo, ao passo que O.J. é um armário. Depois, quando a série entrou na fase do julgamento, passei a achar que a queixa fazia todo sentido: a presença intimidadora de O.J., com a cara fechada e o olhar ora de chumbo, ora de escárnio, outras vezes ainda de tédio, foi um dado relevante no tribunal. Mais crítico ainda, porém, é o descompasso de personalidade entre os dois – a de Cuba é naturalmente colorida e chamativa, enquanto O.J. foi sempre um ególatra, apesar da sua imagem simpática em comerciais de TV e nos filmes da série Corra que a Polícia Vem Aí (que ironia!).
A razão pela qual esse erro de escalação não compromete o saldo final, porém, é simples: The People v. O.J. Simpson é muito mais acerca de “the people” do que acerca de O.J. Simpson. É sobre a precariedade e a instabilidade das relações raciais nos Estados Unidos, e sobre a cultura da celebridade e da espetacularização (à qual o juiz Lance Ito, interpretado por Kenneth Choi, sucumbiu com fraqueza constrangedora). Acima de tudo, é sobre como uma causa legítima e urgente – a discriminação praticada pela polícia e pelo Judiciário – foi sequestrada em prol de um indivíduo que não tinha nenhum direito a se beneficiar dela. A verdade dos fatos e a justiça para as vítimas, essas passaram longe do tribunal.