“E a culpa por acaso é minha?”, a protagonista pergunta ao espectador pelo menos uma meia dúzia de vezes no decorrer de Eu, Tonya – ela questiona que seja culpa sua as lâminas dos patins estarem mal colocadas, o cadarço ter quebrado, seu casamento ser um horror, seus figurinos brega fazerem os juízes tirar pontos das suas notas. E essa, no fundo, é a questão do filme estrelado com garra (e unhas e dentes) por Margot Robbie: entre todas as questões cuja responsabilidade Tonya rejeita, há uma que verdadeiramente esteve sempre fora do seu alcance resolver – o fato de ser uma representante daquilo que os americanos ofensivamente chamam de “white trash”, ou “lixo branco”. Ou seja, branca mas pobre, subempregada, sem escola, acostumada a apanhar da mãe e depois do marido, criada na ignorância. E, com tudo isso, possuidora de um talento extraordinário para a patinação artística, na qual entrou aos 4 anos e pela qual se matou de treinar, com a mãe, a tenebrosa LaVona (Allison Janney, estraçalhando no papel) abrindo-lhe o caminho a cotoveladas. Tonya Harding passou de famosa a notória em 1994, aos 22 anos, quando um amigo burríssimo de seu marido (que já não era assim um brilho) contratou um malandro qualquer para estourar com uma paulada o joelho da grande adversária de Tonya no gelo, Nancy Kerrigan. O sujeito errou o alvo, acertou a perna de Nancy em vez do joelho, e ela conseguiu se recuperar a tempo de ir para a Olimpíada de inverno. (Nancy, aliás, vinha de uma família operária, mas tinha aparência e modos bem mais principescos, e ao gosto do comitê de patinação, do que Tonya, cujas origens eram denunciadas de cara pelo cabelo queimado de permanente caseira e pelo jeito encrenqueiro.)
O episódio virou uma novela, com Tonya no papel de vilã. Até hoje, há dúvidas sobre o quanto ela sabia, ou não, do plano de atacar Nancy. Mas, na direção do australiano Craig Gillespie – assim como em Três Anúncios para um Crime, parte aqui de um estrangeiro a curiosidade sobre essa parcela dos americanos que se colocou no centro do palco com a eleição de Donald Trump –, acompanha-se a história de Tonya desde a infância, passando por todo o imbróglio policial do ataque a Nancy, à procura de um outro fio dessa meada: a violência que é determinar o ponto até que uma pessoa pode chegar tendo como base seu ponto de partida. Tonya nunca foi a melhor amiga de si mesma. Mas talvez nunca lhe faltou gente disposta a ser sua imimiga.
Leia, aqui, a resenha completa:
Sempre Bruxa, Jamais Princesa
O extravagante Eu, Tonya segue a patinadora desde a infância até a célebre agressão à sua rival – e enche de bordoadas a crença num sistema cego a classe ou origem
Em 6 de janeiro de 1994, um sujeito ligado à patinadora Tonya Harding desferiu uma bordoada na perna da principal adversária da atleta no gelo, Nancy Kerrigan, quase conseguiu tirá-la da Olimpíada de inverno daquele ano e fez de Tonya o pivô de uma novela ao vivo na imprensa. Enquanto isso, Eu, Tonya enche de bordoadas a noção americana de mobilidade social e a crença de que ela é cega a classe ou origem. Como o agressor de Nancy, o filme não prima pela sutileza. Mas atinge tão em cheio um nervo exposto que a crítica americana acusou o golpe: Eu, Tonya seria “complicado” – um jeito de dizer que o filme tem bons argumentos, mas estes ofendem certas sensibilidades.
Tonya Harding, hoje com 47 anos, vem de um meio pejorativamente chamado de “white trash”, ou “lixo branco” – a camada da população branca que convive com índices terríveis de pobreza, subemprego, alcoolismo, violência doméstica e deficiência escolar. É um ambiente similar ao retratado em Três Anúncios para um Crime, no que talvez signifique que o choque da eleição de Donald Trump pelo menos despertou alguma vontade de investigar as dificuldades reais desses americanos – e Tonya ilustra bem algumas delas.
Aos 4 anos, a menina já se havia revelado um prodígio dos patins. Sua mãe, a garçonete LaVona (uma fustigante e magnífica Allison Janney), empenhou no treino da filha seus magérrimos recursos. E os cobrou com juros: abuso físico, emocional e psicológico eram a base de seu incentivo a Tonya (Margot Robbie, feroz no papel). Falando com o espectador, Tonya explica por que aceitava a brutalidade do primeiro marido, Jeff Gillooly (Sebastian Stan): ora, ela dá de ombros, os socos e chutes lhe pareciam a regra da normalidade.
Tonya era um demônio sobre patins: forte, vigorosa, louca por riscos. Os juízes, porém, abaixavam suas notas – ela era o oposto da imagem que a patinação gostaria de projetar, e nenhum deles queria vê-la num pódio olímpico. Era estridente, briguenta, cafona. Era de classe baixa e, esse seu pior pecado, o demonstrava. Às vezes extravagante, e sempre envolvente, o filme do australiano Craig Gillespie segue a história policial do ataque a Nancy (até hoje a participação de Tonya no episódio é incerta) para defender a tese de que medir uma pessoa pelo que ela é, e por essa régua decidir o que ela pode ou não se tornar, é uma agressão tão violenta quanto as outras que Tonya sofreu. Na versão encarnada por Margot Robbie, Tonya ao mesmo tempo explora sua vitimização e a desafia. Para quem quer definições simples, é mesmo bem “complicado”.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista Veja em 14/02/2018 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2018 |
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EU, TONYA (I, Tonya) Estados Unidos, 2017 Direção: Craig Gillespie Com Margot Robbie, Allison Janney, Sebastian Stan, Julianne Nicholson, Paul Walter Hauser, Bojana Novakovic, Bobby Cannavale Distribuição: Califórnia |