De um lado da mesa, a policial ouve o testemunho da mulher cujo marido foi preso, meses antes, pelo assassinato de um rapaz: novas informações vieram à tona, e é possível que um segundo homicídio esteja para cair na conta dele. Julia (Sophie Okonedo), a esposa, enxuga as lágrimas com um lencinho guardado na manga do casaco; ninguém imagina o que ela já sofreu, diz Julia, e é insuportável a ideia de ter de reviver o périplo jurídico e o ostracismo social. A detetive encarregada de tomar o depoimento está tão envolvida que nem registra as duas frases extremamente comprometedoras que também vêm incluídas no desabafo. Mas, do outro lado do espelho cego, na sala de monitoramento, um investigador na mesma hora pega o telefone e liga para a supervisora: as coisas acabam de mudar de figura, avisa ele. Ponham-se de lado os tiroteios, as perseguições e mesmo a própria investigação: em Criminal, série da Netflix cujo segmento Criminal: Reino Unido acaba de ganhar quatro novos episódios, a grande forma de ação é o diálogo — uma ação explorada de maneira eletrizante, aliás.
Em cada episódio, o espectador é lançado em um interrogatório diferente, sem nenhum conhecimento prévio sobre o crime ou sobre o interrogado. Nos 45 minutos de conversa, um quadro complexo vai se formando com o uso de três cenários apenas: a sala de interrogatório, a sala de monitoramento e o corredor do andar, único lugar em que os personagens falam com alguma liberdade. Nos dois outros ambientes, eles agem como atores que desempenham um papel — ou, melhor dizendo, como dois grupos de atores que seguem roteiros antagônicos. Vieses de caráter, conflitos pessoais e disputas profissionais tingem os embates organizados em torno de tópicos de alta temperatura, como perseguição nas redes sociais ou assédio sexual (Kit Harington, o Jon Snow de Game of Thrones, vive um acusado de estupro com arrogância e sinceridade simultâneas). Não há previsão ainda de novas levas para as edições alemã, francesa e espanhola de Criminal, mas esta segunda temporada de Reino Unido prova que não há arma mais contundente que a palavra.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706