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George Orwell, de ‘1984’, prova sua relevância em tempos de autoritarismo

De volta à lista de mais vendidos, 'A Revolução dos Bichos' e '1984' confirmam que ninguém deixou um mapa tão útil — e atual — da tirania

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 14h21 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00
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  • Um adendo à matéria publicada em Veja e reproduzida a partir do próximo parágrafo: ler 1984 e A Revolução dos Bichos é mais ou menos indispensável — além de um prazer, já que George Orwell era, além de um grande pensador, um grande escritor. Ainda assim, esses dois livros apenas não dão toda a dimensão da literatura dele. Nem da qualidade de sua prosa, nem da pungência e da delicadeza que ela deixava transparecer. Meu favorito, lamentavelmente, não parece mais estar disponível em tradução para o português: Coming Up for Air, sobre um homem em tudo comum — um vendedor de seguros, casado e com dois filhos, que se irrita de manhã com o colarinho que esfrega na nuca mal enxaguada e ainda cheia de sabão — que, tentando recuperar um dia do seu passado, resume toda a sensação de perda e a perplexidade do mundo pré-II Guerra. Entretanto, estão à disposição em boas traduções da Companhia das Letras os também maravilhosos O Caminho para Wigan Pier, Dias na Birmânia e Na Pior em Paris e Londres (este, meu segundo favorito), além de vários ensaios e coletâneas. Se você nunca experimentou, que inveja: tem toda essa descoberta pela frente.

     

    Deixado a sós em uma cela, Winston Smith afinal formula para si mesmo: 2 + 2 = 5. O pensamento é fugidio; tem de ser aceito, mas não examinado. Será verdade sempre que o Partido o determinar, da mesma forma que 2 mais 2 somarão 3, ou mesmo 4, se o Partido assim ditar. A tortura fez Smith ceder à flexão aritmética, e ele agora está a apenas um passo de se conformar com a doutrina Ingsoc (abreviação de “socialismo inglês”), que regula até os pensamentos — principalmente os pensamentos — de cada cidadão a cada minuto de cada dia. Smith pensou diferente; é um criminoso. Se vai viver ou ser executado, não sabe. Mas nem uma coisa nem a outra acontecerão enquanto ele não tiver sido recondicionado desde o âmago. Lançado pelo inglês George Orwell em 1949, o romance 1984 costuma ser descrito como uma “ficção distópica”, ou um cenário futurista de opressão. Tecnicamente correta, a definição deixa escapar o essencial: não era de futuro que Orwell estava falando, mas do presente então em curso. Desenhou um mapa tão preciso que ele nunca deixa de ser útil. Em qualquer presente em que ondas autoritárias ou irracionais se levantem, 1984 volta espontaneamente à tona. O romance disparou nas vendas da Amazon americana em 2017, quando Donald Trump assumiu a Presidência. Coincidindo com a subida de tom do governo Bolsonaro, ele há semanas lidera a lista de mais vendidos de VEJA juntamente com A Revolução dos Bichos, a fábula satírica sobre o stalinismo publicada por Orwell em 1945.

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    O VÍCIO DA CLAREZA - Orwell na BBC, durante a II Guerra: entendimento vertical da natureza humana (The Granger Collection/Fotoarena)

    Rever a história passada, ou imaginar a história futura, é uma operação que está ao alcance de muitos. Mas mirar o presente de dentro dele, despindo-o de sombras e artifícios e limpando-o de vieses e partidarismos, requer extraordinárias lucidez e clareza. Orwell tinha-as como quem tem um vício. Enquanto tantos ainda viam no comunismo soviético um oposto ao fascismo da década de 30, ele enxergou desde o primeiro momento as distorções tétricas do regime — o culto ao ditador Josef Stalin, seu reino de terror e de vigilância incessante, o sistema de castas em que o aparato de poder se convertera. Orwell, um socialista, começara a pintar esse retrato em A Revolução dos Bichos. Em 1984, porém, foi muito além da ironia de que “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros”. Sua reflexão sobre a natureza do totalitarismo é tão profunda e perspicaz que nenhum futuro parece ser capaz de torná-la ultrapassada. Apenas os mecanismos — se tanto — mudam; sua essência permanece inalterada.

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    Tome-se, por exemplo, a refeitura da história a que Winston Smith se dedica em seu trabalho no Ministério da Verdade, alterando qualquer linha de texto jamais publicada que conflitue com os acontecimentos presentes e perenemente manufaturando uma nova verdade. O atual bombardeio de fake news tem efeito idêntico ao da versão única e incontestável — o de criar tantas versões dos fatos que, no limite, seria impossível distinguir entre verdade e fabricação. Também os outros recursos do Partido soam alarmantemente atuais: a onipresença das telas que transmitem e recebem, a abolição da privacidade, a reformulação da linguagem de maneira a direcionar o pensamento — a “novilíngua” citada pelo ministro do STF Celso de Mello na sua nota do domingo 31 — ou ainda os “dois minutos de ódio”, as sessões coletivas e compulsórias de execração dos inimigos da pátria que levam os participantes a paroxismos. No seu conjunto, o que a Ingsoc faz é produzir cidadãos perfeitamente acríticos. Capazes, portanto, de aceitar que 2 e 2 somam 5, ou 3, ou até 4, conforme lhes seja dito — ou de acreditar que o chavismo e o bolsonarismo são movimentos democráticos, que a Terra é plana, que as vacinas são nocivas, que o novo coronavírus é inofensivo. Como disse o italiano Umberto Eco, só um quarto de 1984 é ficção; os outros três quartos são história (essa é apenas uma das razões, também, pelas quais em 2002 o filósofo americano Christopher Hitchens escreveu o livro-ensaio Por que Orwell Importa).

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    Procurar Orwell em um momento como este é salutar — e na terça-feira 9 a Companhia das Letras disponibiliza ainda outro título, a coletânea de trechos Sobre a Verdade. Entender de onde veio sua sagacidade, entretanto, é tão importante quanto desfrutá-la. Nascido Eric Arthur Blair em 1903 na Índia, onde seu pai era funcionário público, ele foi despachado na infância para estudar na Inglaterra e completou sua instrução na exclusivíssima Eton, frequentada há 600 anos pela aristocracia inglesa. Aí se desviou da rota programada: em vez de seguir para as universidades de Oxford ou Cambridge, ingressou na Polícia Imperial Britânica da Índia e nela ficou por cinco anos, até o asco pelo colonialismo se tornar insuportável. Em 1928, mudou-se para Paris e viveu dois anos em penúria, lavando pratos até dezessete horas por dia e passando fome. De volta à Inglaterra, repetiu a dose, ora trabalhando como tutor, ora vagando como mendigo. Já atuando como jornalista e ensaísta (ele adotaria o pseudônimo George Orwell em 1933), lutou contra as forças franquistas na Guerra Civil Espanhola, onde adquiriu sua aversão ao stalinismo e levou um tiro no pescoço do qual nunca se recuperaria completamente. Durante a II Guerra, na BBC, transformou-se numa voz influente, e tirou do funcionamento da emissora estatal várias ideias desenvolvidas em 1984.

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    Nenhum escritor do século XX somou tanto em vendas de dois títulos diferentes — A Revolução dos Bichos e 1984 — quanto Orwell. Ainda assim, ele morreu pobre e em má saúde, aos 46 anos. Viveu muitas vidas, porém, e tirou delas uma experiência vertical de poder e impotência, pobreza e riqueza, dominação e sujeição que não se equipara à de nenhum outro autor e que dispersou nele também qualquer noção romântica acerca dos oprimidos e destituídos. A natureza humana, observou ele em Na Pior em Paris e Londres, é curiosamente a mesma em todas as gradações do espectro fiscal, social e ideológico. Este, enfim, é o fundamento da persistência do “pesadelo orwelliano”: a franqueza, a nitidez, seu vício pela clareza.

    Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690

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