Por melhores que tenham sido os filmes de super-heróis do último ano (Pantera Negra, Vingadores: Guerra Infinita, Aquaman), e por melhores que sejam os que estão por vir em breve (Capitã Marvel, X-Men: Fênix Negra), não há dúvida de que algumas qualidades do gênero se perderam neste ciclo que se está encerrando: uma certa simplicidade e alegria, uma certa agitação – exatamente as qualidades que fizeram dos dois primeiros Homem-Aranha de Sam Raimi, por exemplo, uma experiência tão radiante. No tempo geológico dos filmes de super-herói, porém, os voos de Tobey Maguire por Nova York pertencem ao passado distante. E por isso mesmo é tão surpreendente, e também tão amoroso, o trabalho arqueológico de Phil Lord em Homem-Aranha no Aranhaverso: Lord, o maestro pop de Uma Aventura Lego e Anjos da Lei, remove das histórias “de origem” todas as camadas de sedimentos – a grandiloquência e grandiosidade, os efeitos bombásticos, o excesso de mitologia – para chegar direto ao coração daquilo que fez do gênero o grande espaço de congregação desta geração: a eficácia e a maneira direta com que eles põem cada espectador no lugar de um personagem. Ou mesmo com que fazem cada espectador ser potencialmente ele mesmo o personagem da sua história. Mais: Aranhaverso é arrebatador, uma infusão de energia e renovação – e de alguma inovação – não só nos filmes de super-heróis, como também na animação.
O protagonista, aqui, não é Peter Parker, o Homem-Aranha que todos conhecem – e de quem o filme dá conta em coisa de 1 minuto e meio. É Miles Morales, um garoto de 13 anos do bairro nova-iorquino do Brooklyn, filho de um policial negro e de uma enfermeira porto-riquenha que, concentrados no futuro do filho único, transferiram-no da escola pública onde ele já tinha sua popularidade assegurada para um colégio particular em que ele pernoita durante a semana e no qual ainda se sente deslocado. Miles é um estudo encantador da pré-adolescência: é amoroso mas já entrou na fase de revirar os olhos para qualquer coisa que os pais digam; é falante com os amigos mas já lapidou a arte de dar aos adultos sempre a resposta mais curta possível (menos que um monossílabo, às vezes) a qualquer pergunta; é sociável e feliz mas já se tranca no quarto, fone nos ouvidos e olhos grudados no computador; adora o tio cool e liberal e perde a paciência com o pai dedicado e responsável. Sobretudo, Miles não sabe se foge das mudanças inevitáveis da idade ou se corre de encontro a elas – dúvida que se torna irrelevante quando uma aranha radioativa o morde. Quer ele queira, quer não, seu mundo vai ser chacoalhado.
Com criatividade atordoante, Aranhaverso põe na tela um quadrinho como nunca se viu antes no cinema – uma fusão de linguagem gráfica, ação, trilha de efeitos e música (quase sempre gemas do hip-hop) que, em vez de submergir os personagens, levanta-os como em uma onda, empurrando-os à frente. Wilson Fisk (o vilão também da série O Demolidor da Marvel/Netflix), uma montanha de malevolência em cujo interior sobrevive um pedregulho de afeto – pela mulher e filho que ele perdeu, conforme acredita, por causa do Homem-Aranha –, está testando nos subterrâneos de Nova York um acelerador de partículas que vai trazer, para o presente, todos os universos paralelos em que sua família ainda possa existir. O risco iminente é o desmonte desta dimensão; e o efeito colateral imediato é a entrada, na vida de Miles, de várias outras versões do Homem-Aranha, incluindo uma Menina- e uma Mulher-Aranha. Só ele existe de fato neste momento, porém. Só ele, portanto, pode enfiar no acelerador o pen-drive que destruirá o equipamento (e tente você acertar de primeira uma entrada USB enquanto todo o universo gira feito doido).
Se a responsabilidade é descomunal para um garoto de 13 anos, pense-se nos desafios colossais de uma geração que têm de carregar todas as expectativas dos pais, em geral sem irmãs ou irmãos com que dividi-las; que tem a sensação (aliás, real) de se ter tornado o motor involuntário de uma revolução nos padrões de convivência, de resultado ainda desconhecido; que enfrenta uma polarização tão aguda de princípios e opiniões que, na maior parte das vezes, é como se estivesse equilibrando-se sobre um vazio – mas que, com tudo isso, não pode escapar de atravessar os estágios emocionais prescritos pela evolução humana. Com toda a sua efervescência visual e narrativa, Aranhaverso é, no fundamental, uma façanha da simplicidade. Para qualquer um de nós, no limiar da vida adulta (e não só nele), este mundo pode parecer complicado demais. Mas, de alguma maneira, assim como Miles, cada um de nós é capaz do feito heróico de existir nele e, com sorte, achar um caminho ou um propósito.
Trailer
HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO (Spider-Man: Into the Spiderverse) Estados Unidos, 2018 Direção: Peter Ramsey, Bob Persichetti e Rodney Rothman
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Com as vozes de Shameik Moore, Hailee Steinfeld, Brian Tyree Henry, Mahershala Ali, Liev Schreiber, Chris Pine, John Mulaney, Jake Johnson, Zoë Kravitz, Lily Tomlin, Kathryn Hahn, Luna Lauren Velez, Nicolas Cage |