Pego fazendo-se passar por agente do FBI para roubar o carro de uns mal-encarados de Chicago, o vigarista Bill O’Neal (LaKeith Stanfield) tem de dar explicações aos federais genuínos. Entre divertido e severo, o agente Roy Mitchell (Jesse Plemons) explica que ele vai encarar alguns anos de prisão pelo carro, e outros mais por fingir-se de oficial da lei. Ou pode escolher a alternativa: já que é tão bom em interpretar papéis, fica livre do indiciamento se conseguir se infiltrar no ramo local dos Panteras Negras, cujo diretor, Fred Hampton (Daniel Kaluuya), é uma liderança em rápida ascensão no ativismo negro em razão de seu carisma, de seu dom para a oratória arrebatadora e da intransigência de seus princípios. É a virada dos anos 60 para os 70 e o FBI está ainda sob a direção do tenebroso J. Edgar Hoover (Martin Sheen), que passou a última década e meia fazendo o possível e o impossível (além do ilícito, e às vezes o criminoso) para sufocar o movimento pelos direitos civis dos negros, com particular atenção às suas parcelas mais combativas — como os Panteras Negras. É claro que O’Neal escolhe infiltrar-se. E o que se passa a partir daí é o assunto de Judas e o Messias Negro (Judas and the Black Messiah, Estados Unidos, 2020), já em cartaz naqueles cinemas do país que estiverem em funcionamento.
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Hampton figura de passagem em outro filme recente, Os 7 de Chicago, mas o capítulo de sua história contido em Judas e o Messias Negro nunca foi recriado com a riqueza que o diretor e corroteirista Shaka King dedica a ele, nem com tanta compaixão e consternação. O encontro entre Hampton e O’Neal resultou em uma série de tragédias. No caso de Hampton, o Messias, elas vieram em curto prazo; para O’Neal, o Judas, se prolongaram por anos antes de atingir a culminação.
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O’Neal conseguiu não apenas se aproximar dos Panteras, como ganhou a amizade de Hampton e galgou posições em sua confiança. Em meses, chegou ao posto de chefe de segurança do ramo de Chicago. Seu êxito se deveu em parte à pressão do agente Mitchell, que o lembrava sempre da ameaça da prisão ao mesmo tempo que o tratava com uma consideração que o ex-vigarista jamais esperara receber de um homem da lei branco, e que espontaneamente ele passou a retribuir em fidelidade. De outra parte, a ascensão de O’Neal resultou de uma reação química também ela espontânea: admiração, fascínio e respeito por Hampton, e encanto com o ativismo de seus novos pares.
Desde sua fundação, em 1966, como uma organização de resistência e eventual revide à violência policial, o Black Panther Party — esse era seu nome oficial — vinha se dedicando ativamente a programas comunitários de saúde e alimentação e de estímulo à escolaridade para as comunidade negras, com os quais respaldava o chamado a não abaixar a cabeça e a fazer a revolução. Nunca O’Neal imaginara ser possível alimentar aspirações como essas e, à medida que ele notava no agente Mitchell o desconforto deste com as decisões de Hoover, maior o terreno que essas aspirações ganhavam nele. Mais que dividir-se, portanto, suas lealdades antagônicas conviviam nele — ou conviveram, até o momento inevitável da colisão.
Companheiros de cena também em Corra!, Kaluuya e Stanfield oferecem aqui interpretações nada menos que soberbas. Kaluuya equilibra com veracidade notável as facetas díspares de Fred Hampton: aos 20 anos de idade, ele em público tinha já uma firmeza e uma capacidade de inflamar que em nada ficavam a dever às de Martin Luther King ou Malcolm X — mas, no trato pessoal, podia ser de uma delicadeza tocante ao confortar a mãe de um companheiro morto, ou ainda de uma timidez enternecedora, como na corte à sua mulher, Deborah Johnson (Dominique Fishback). Já Stanfield é um assombro como o sobressaltado, nervoso, reativo e confuso Bill O’Neal, que sabe se colocar a serviço da traição máxima mas não faz ideia de como fugir a ela.
Somadas a esses desempenhos, a minúcia e a vividez com que King reconstitui o episódio resultam, num primeiro plano, em um documento histórico de qualidade notável. Tanto pela excelência como pela atenção aos dramas que se vão desencadeando no íntimo dos personagens, assim, o filme evoca sem artimanha nem proselitismo o quadro atual das relações raciais nos Estados Unidos: passados 55 anos, a mesma demanda que ocasionou o surgimento dos Panteras Negras — a violência policial sistemática — continua em pauta no #VidasNegrasImportam, tão urgente e necessária quanto antes.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727
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