Em uma noite de 2010, Mari Gilbert (Amy Ryan) esperou que Shannan, sua filha mais velha, viesse visitá-la na hora do jantar. Shannan não veio mas, como ela não levava uma vida muito regular, sua mãe não chegou a se preocupar; apenas ficou desapontada. Foi Sherre (Thomasin McKenzie), a filha do meio, quem deu o alarme: nem mesmo o namorado de Shannan sabia dela, e ligara perguntando por alguma informação. Aí começou a peregrinação da mãe, atrás do namorado, do motorista que levava Shannan aos seus encontros, dos moradores do condomínio em que ela fora vista pela última vez, atendendo um cliente. Mari descobriu que a filha fugira correndo de uma casa, gritando que tentavam matá-la, e ligara para a emergência pedindo socorro — mas só uma hora depois uma viatura dera as caras por lá, quando já não havia nem sinal de Shannan. Na delegacia, Mari não conseguiu que lhe dessem ouvidos: Shannan “devia estar drogada”, uma hora qualquer reapareceria, colocara-se ela mesma no caminho do perigo. Quando o cão de um patrulheiro por acaso farejou um cadáver nas imediações do local do sumiço, um cenário tétrico começou a se descortinar, mas nem aí o desprezo em torno de Shannan se desfez. Ela era, afinal, uma prostituta. Eis o fio condutor do primeiro longa de ficção da experiente e talentosa documentarista Liz Garbus: em Garotas Perdidas (Lost Girls, Estados Unidos, 2020), produção da Netflix já disponível na plataforma, a diretora se vale de um caso verídico para, como em muitos de seus trabalhos, destrinchar a maneira indecorosamente desigual como a justiça é distribuída.
Há tempo a Netflix não lançava um filme original com o nível de competência e a força dramática de Garotas Perdidas. Com rigor naturalista e sob a luz desoladora do outono, Liz Garbus cria um quadro austero em cujo centro está um vulcão de energia, teimosia e indignação: Mari, a mãe que parece aos detetives muito fácil julgar — pela tintura barata dos cabelos, pelos modos bruscos, pelos problemas que já teve com Shannan e por aceitar empréstimos do dinheiro que a filha ganhava com prostituição. Igualmente fácil, para eles, é julgar as dez ou mais moças cujos cadáveres são descobertos, todas prostitutas que anunciavam seus serviços no mesmo site. Os corpos foram reenterrados recentemente, sinal de que o assassino está tentando afastar a investigação de seu lugar de ação. Um deles é identificado como de uma garota desaparecida no meio da década de 90; ou seja, há quinze anos jovens vêm sendo mortas sem que ninguém faça caso delas. “Pelo menos o culpado não escolhe suas vítimas entre os cidadãos em geral”, diz um detetive.
Mari e as mães e irmãs das outras vítimas, entretanto, cuidam de que o espectador não esqueça que as moças são antes de mais nada pessoas queridas de alguém, por mais imperfeito que esse “alguém” seja. Amy Ryan é uma atriz poderosa, que sabe como poucas exprimir os estados de ânimo e as forças e fraquezas das americanas de origem proletária, em trabalhos como a série The Wire e em outro thriller sobre um desaparecimento, Medo da Verdade (2007). Aqui, com sua garra, ela faz um belo contraponto com a excelente Thomasin McKenzie, de Jojo Rabbit, no papel da filha do meio delicada e ponderada que descobre mais do que gostaria de saber no curso da investigação, e repete uma de suas melhores parcerias — com Gabriel Byrne, com quem contracenou na série Em Terapia. Ainda assim, a verdadeira estrela de Garotas Perdidas é a justiça com que Liz Garbus, ao menos, trata as vítimas: não como peças de um mistério policial, mas como indivíduos que deixam atrás de si uma ausência irreparável.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679