Magérrimo, com o rosto cadavérico e fechado numa expressão impassível, Mark Felt (Liam Neeson), há trinta anos braço direito do todo-poderoso J. Edgar Hoover no FBI, faz o seu número de que quem avisa amigo é: deixa cair, na reunião com os assessores do presidente Richard Nixon, que Hoover tem dossiês privados e sigilosos sobre toda e qualquer pessoa com alguma atividade política no país: sabe de todas(os) as(os) amantes, todas as transgressões, todos os segredos grandes e pequenos. É claro que no que depender dele próprio, Felt, esses arquivos estão seguros. Mas, se algo acontecer… Os assessores suam frio. Nixon está para concorrer à reeleição. Hoover está velho e depende de Felt para tudo; pela primeira vez, portanto, um presidente consegue reunir coragem para tentar aposentar o criador e diretor do FBI. Felt é o sucessor natural – exceto pelo fato de que promete ser tão difícil e perigoso quanto o próprio Hoover. E algo estranho acaba de acontecer: um punhado de sujeitos escusos foi pego plantando escutas e bisbilhotando os escritórios do Partido Democrata no Hotel Watergate, em Washington. A mando de quem? Cabe ao FBI investigar. Bem nessa hora, Hoover cai morto, e Nixon manobra as peças no tabuleiro para colocar um homem seu, Patrick Gray (Marton Csokas), na direção do FBI, com o intuito claríssimo de melar a investigação do episódio Watergate e aparelhar a polícia federal.
Mark Felt – O Homem que Derrubou a Casa Branca é o outro lado de Todos os Homens do Presidente (1976), o mais estupendo dos thrillers políticos, sobre como dois repórteres do jornal Washington Post arrumaram uma fonte graduadíssima e, com as informações fornecidas por ela, provaram que era o próprio Nixon o mandante da espionagem no Watergate, num escândalo que terminou com a renúncia do presidente às vésperas do impeachment líquido e certo (e com o apelido que ele nuncou conseguiu perder, de “Tricky Dick”, ou “Dick Trapaceiro”). Mark Felt era a fonte graduadíssima, que passou à história como “Garganta Profunda” (em homenagem ao pornô-sensação lançado em 1972). Até 2005, ninguém além dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein soube quem ele era: foi só então que Felt veio a público identificar-se como o Garganta Profunda. Ou seja, o filme do diretor Peter Landesman é para fãs hardcore dos bastidores da política – até porque exige do espectador um mínimo de familiaridade com o caso Watergate, ou ele vai ter alguma dificuldade em se situar.
O curioso é como Mark Felt se utiliza ao mesmo tempo da finesse de Neeson como ator e também da imagem que ficou associada a ele na última década, desde que ele deu uma guinada para o cinema de ação e pancadaria com Busca Implacável: a de um sujeito com o qual não se brinca – mesmo. Felt, um modelo de disciplina e racionalidade, não usava os punhos nem armas. Mas Nixon e todo o seu governo pagaram caro por subestimar a ferocidade dele. Um homem muito mais moral do que Hoover, que jogava sujo e pesado e praticou canalhices de vileza incalculável (especialmente contra negros, mulheres e homossexuais – ele próprio era enrustido e horrivelmente mal resolvido), Felt compartilhava com seu e chefe e mentor, no entanto, a fé na independência absoluta do FBI de qualquer dos poderes do República e no dever de levar qualquer investigação às últimas consequências (o que seria feito do fruto dessas investigações, entretanto, era coisa que Hoover decidia caso a caso, conforme a sua conveniência; hoje os estatutos são bem mais claros). Na doutrina deles, presidentes não pressionavam o FBI; o FBI é que pressionava os presidentes. Felt, assim reagiu à operação-abafa de Nixon tanto por orgulho ferido quanto por questão de princípios. Impossibilitado de investigar às claras, continuou a fazê-lo em segredo, soprando tudo o que descobria nos ouvidos de jornalistas.
É provável que, para quem não é fã desse gênero de filme, Mark Felt se prove um programa complicado ou mesmo chato. Para quem adora (eu me incluo na categoria), pode ser fascinante ver como um homem se obriga a fazer o que despreza para assegurar aquilo em que acredita. Um diretor com mais criatividade cinematográfica do que Landesman (de Um Homem Entre Gigantes) talvez servisse melhor ao filme. Por outro lado, com suas extensas credenciais como repórter investigativo e correspondente de guerra várias vezes premiado, Landesman serve muito bem a um outro aspecto da história, que os brasileiros sabem ser urgentíssimo e que se tornou dramático para os americanos desde a eleição de Trump: investigar e fazer conhecer o resultado da investigação é vital, seja qual for o custo público e pessoal. A não ser que se goste da ideia de virar rebanho de governantes cabulosos e Estados aparelhados.
Trailer
MARK FELT – O HOMEM QUE DERRUBOU A CASA BRANCA (Mark Felt: The Man Who Brought Down the White House) Estados Unidos, 2017 Direção: Peter Landesman Com Liam Neeson, Marton Csokas, Tony Goldwyn, Diane Lane, Tom Sizemore, Brian D’Arcy James, Josh Lucas, Michael C. Hall, Bruce Greenwood Distribuição: Diamond |