‘O Preço da Verdade’ encena um desastre ecológico de impacto global
Filme de Todd Haynes narra com brilho a história do advogado corporativo que mudou de lado e revelou um escândalo de saúde pública
Na paisagem cinzenta de inverno, Wilbur Tennant (Bill Camp) mostra ao advogado Rob Bilott (Mark Ruffalo) o saldo da contaminação misteriosa que atingiu sua fazenda: uma centena de covas imensas, uma ao lado da outra, nas quais ele enterrou suas vacas como se fossem pessoas queridas, até não mais conseguir dar conta de tantas mortes e passar a queimar os animais. Cento e noventa cabeças perdidas — todo o rebanho, toda a fonte de renda da família, todo o trabalho de décadas. Apesar do título nacional genérico, O Preço da Verdade (Dark Waters, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país, é um filme devotado às minúcias e particularidades de sua história, do local em que ela ocorre e das pessoas que a protagonizam: o fazendeiro que é o primeiro em sua cidadezinha da Virgínia Ocidental a se levantar contra o gigante DuPont, que emprega todos ali, e por isso começa a ser tratado como inimigo público; o advogado que foi criado no lugarejo mas esconde as raízes caipiras na firma de Cincinnati da qual se tornou sócio; os executivos da indústria química que se congratulam uns aos outros em jantares formais nos quais o serviço é ainda, em 1998, feito por negros; as mulheres que abandonaram a carreira para cuidar dos filhos e agora se ressentem das cruzadas dos maridos — e a maneira como esses caldos se fermentaram mutuamente durante a maior parte de duas décadas, em ações legais que prosseguem e continuam repercutindo.
Baseado em um artigo de 2016 do jornal The New York Times intitulado “O advogado que virou o pior pesadelo da DuPont”, O Preço da Verdade pode até passar por um exemplar robusto do gênero da ecodenúncia — e não deixa de sê-lo, uma vez que são de arrepiar os cabelos a clareza e o detalhe com que ele narra como a queixa do fazendeiro Wilbur Tennant provou ser apenas o início de um dos casos mais escandalosos de desastre ambiental e de saúde pública já noticiados, e também de má-fé e empáfia corporativa. Mas o papel quase solitário de Rob Bilott no episódio e a abnegação com que Mark Ruffalo o interpreta elevam o resultado bem além de uma daquelas histórias de pequenos contra grandes. O que mais surpreende, porém, é a circunspeção com que o diretor Todd Haynes conduz a trama. Conhecido por melodramas de época como Longe do Paraíso, Mildred Pierce e Carol, ele aqui submete seu estilo exuberante à austeridade do tema, sem se furtar a oferecer aqueles painéis de costumes repletos de pormenores — como na relação de Bilott com sua mulher, vivida com inteligência por Anne Hathaway.
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O próprio Bilott é um personagem que existe nesses pormenores. Um advogado experiente na defesa de indústrias químicas, ele foi visitar Tennant apenas para satisfazer um pedido de sua avó, que conhecia o fazendeiro e estava condoída dele. Mesmo quando viu as evidências coletadas por Tennant — a dentadura enegrecida das vacas, a perda de peso dramática, os tumores extirpados delas, os relatos de loucura na fase terminal —, continuou cético. Mas também ele se condoeu do fazendeiro, e a mesma consideração que o fizera atender a avó o moveu a investigar mais.
O que Bilott encontra, depois de mudar de lado e laboriosamente juntar um indício a outro, pesquisar mais um tanto, ouvir esta ou aquela pessoa e, sobretudo, abrir os olhos para o que está muito à vista na pequena Parkersburg, é um pesadelo, ao qual se soma outro — o de achar um caminho pelo qual responsabilizar uma grande corporação cujos bolsos não têm fundo e que conta ainda com a mãozinha da legislação autorregulatória. Lá pelo meio do filme, a pressão incalculável fez de Bilott um trapo. E já ficou claro também que não pode haver final feliz. Eis, aliás, o mais assustador: quanto essa história, assim como outras que ainda não se conhecem, está longe de acabar.
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674
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