O que torna o ‘Batman’ de Robert Pattinson perturbador, mas imperdível
Bruce Wayne nunca foi tão traumatizado quanto na interpretação do ator, nem Gotham tão doente quanto no Batman notável — e opressivo — de Matt Reeves
O mal-estar sempre pairou sobre Gotham. Mas agora a metrópole é ainda mais ameaçadora que o fora na trilogia Cavaleiro das Trevas, e mais degradada até que na versão moldada na Nova York dos anos 70 de Coringa. No Batman (The Batman, Estados Unidos, 2022) do diretor Matt Reeves, já em cartaz no país, Gotham é suja, insalubre, corrupta, doente, desgovernada — um pesadelo urbano do qual não se pode acordar. O sinal do Homem-Morcego, personagem que encontrou Robert Pattinson na hora certa (leia a entrevista), é projetado quase sem pausa no céu, mas o justiceiro mal faz diferença contra as criaturas que devoram a cidade à noite; os criminosos, os delinquentes, os cafetões, as gangues de cabeça raspada são como um burburinho que não para. Mas é com o som de uma respiração pesada, concentrada, que começam os eventos que farão Bruce Wayne de fato mergulhar na persona que criou: por uma mira, alguém observa um menino que, fantasiado para o Halloween, alegra-se com a chegada dos pais de uma festa — um eco do próprio Bruce, que teve os pais assassinados na infância em circunstâncias semelhantes. Mas a vítima, agora, é o prefeito Don Mitchell, pela quarta vez candidato à reeleição e pela primeira vez prestes a perder o cargo para uma jovem negra que enuncia com clareza o que ele tenta obscurecer: que Gotham está largada aos cães.
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A vez do próprio Mitchell acaba de chegar, e é o filho pequeno quem encontra o corpo do pai, morto de maneira horripilante por uma figura encapuzada e mascarada, com um emblema no peito e sem nenhuma feição à mostra. Quem pensar no Zodíaco, o serial killer que instaurou o pânico na área da Baía de São Francisco entre 1968 e 1969, acertou no alvo: foi ele a inspiração para Reeves materializar no vilão Charada, aqui interpretado por Paul Dano, seu conceito de um terror sem rosto e sem propósito que se possa adivinhar (leia a entrevista com o diretor em veja.abril.com.br). O mesmo, porém, vale para Bruce Wayne. Quando põe a máscara e se torna Batman, também ele é um agente do terror, e também ele está um passo mais próximo de linhas que não devem ser cruzadas.
O anonimato em que Batman age e a dualidade que a identidade oculta permite a ele são a razão fundamental pela qual ele é o herói de quadrinhos ao qual mais o cinema retorna — a cada vez em clima mais sombrio. Esta, entretanto, é a encarnação mais jovem do personagem, e de longe a mais traumatizada. No desempenho repleto de riscos de Robert Pattinson, Bruce Wayne é quase um vazio; não é ele quem preenche a fantasia, mas ela que o preenche. Sem vida fora da sua missão e desinteressado da fortuna que herdou e que, como avisa o mordomo Alfred (Andy Serkis), está minguando, este Bruce não se faz de playboy e pouco tem de arsenal além da armadura, das lentes de contato capazes de gravar o que está vendo — sempre em imagens escuras e afuniladas — e do carro que é todo motor, armamento e ângulos duros. Nessa Gotham lamacenta, nem o Pinguim (Colin Farrell, irreconhecível) ganha a graduação de adversário. Ele é, isso sim, um facilitador repelente, um fornecedor de vícios e perversões que os poderosos praticam juntos, amarrando-se uns aos outros.
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Esse é, enfim, o Batman da solidão urbana e da depressão, que só pela sensação de fracasso ou pelo luto consegue se conectar com alguém. Por exemplo, com o detetive Gordon (o excelente Jeffrey Wright), cronicamente posto de escanteio nesse ninho de corrupção promíscua que é Gotham porque a honestidade exala dele como um cheiro ruim. Ou ainda com Selina Kyle, que ensaia os primeiros passos como Mulher-Gato na busca por uma amiga desaparecida e que, em mais uma ótima interpretação de Zoë Kravitz, é um retrato muito reconhecível de uma mulher habituada a ser usada mas cansada de se resignar a isso.
Depois de seu trabalho vigoroso, cheio de músculo, em Planeta dos Macacos: o Confronto e a Guerra, Matt Reeves parte aqui para uma reconceituação ainda mais ambiciosa, além de profundamente pessimista. Trabalhando com uma paleta feita quase só de vermelho e de escuridão em densidades diversas que a música de Michael Giacchino faz pulsar, e filmando em closes fechados ou em cenários sufocantes nos quais as pessoas se amontoam em orquestrações notáveis de movimentos, Reeves dá ao submundo de Gotham um sentido adicional, o de uma terra de penumbra em que ninguém está morto nem completamente vivo. Se faltam ao seu Batman os crescendos, o arrebatamento e a realização exuberante do espetáculo da trilogia de Christopher Nolan, é porque o mundo já não é o de dez ou quinze anos atrás e não se trata mais aqui da erupção do caos, mas, sim, dos escombros que ele deixa na sua passagem.
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779
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