Todos, na opinião de Ove, são “idiotas!”: é o que ele grita para os motoristas que circulam de carro na rua de pedestres do seu condomínio, para a caixa do supermercado que diz que o preço das flores é diferente conforme a quantidade comprada, para a moça que deixa o cachorro fazer xixi na calçada, para o sujeito que bate na caixa de correio quando manobra para entrar na garagem – para qualquer um, enfim, que desrespeite alguma das infinitas regras com que Ove tenta regimentar sua vida e a dos demais. Mas, no candidato sueco ao Oscar de filme de estrangeiro, o ator Rolf Lassgard interpreta Ove com uma energia tão obstinada, e com uma exasperação tão humana, que o estereótipo do velho ranzinza logo se desfaz: Ove, na verdade, não suporta o caos da existência, e tem um medo profundo das desgraças que ele pode operar na sua vida, ou na vida dos outros. Em flashbacks bem dosados, que retrocedem até a infância de Ove e então sua juventude, o diretor Hannes Holm mostra como o protagonista aos poucos foi formando sua visão fatalista do mundo. A obsessão com a ordem é, para Ove, um algoritmo interno de sobrevivência. E, como a ordem dificilmente leva a melhor no mundo, Ove decide que está farto e vai é se suicidar – um plano que seus vizinhos, sem querer, frustram repetidas vezes.
Toni Erdmann, o concorrente alemão de Um Homem Chamado Ove na categoria de produção estrangeira, também tem um protagonista solitário lá pelos seus 60 anos, e vem ganhando disparado em favoritismo. Mas, embora Ove seja superficialmente um filme mais previsível, ele é também muito mais autêntico. O viúvo Ove é mesmo brusco e rude, mas ele tem um senso de justiça e solidariedade que o conecta, apesar de si mesmo, com seus semelhantes. Principalmente com Parvaneh (a irresistível Bahar Pars), a jovem iraniana casada com um sueco, mãe de duas meninas pequenas e muito grávida de um terceiro filho, que se mudou para a casa da frente, e que não se abala com as grosserias do vizinho. Parvaneh reconhece a solidez de Ove, e vai em frente na amizade, absolutamente tranquila (e olimpicamente unilateral), até Ove conseguir se convencer de que ela não vai desistir dele. Rolf Lassgard é um ator que ocupa um espaço imenso, tanto figurativo quanto literal – é um grandalhão de mais de 1m90, com uma barriga saudável de quem come bastante carne com batatas (a dieta das pessoas sensatas, na opinião dele) –, e uma das belas sutilezas do filme está em como ele afinal passa a ocupar esse espaço não mais de maneira belicosa ou agressiva, mas com uma certa medida de conforto.
Uma certa medida de conforto é o melhor que se pode esperar da vida também na lindíssima animação franco-suíça Minha Vida de Abobrinha – outro azarão na sua categoria, já que está com todo jeito que Zootopia (que é uma graça, de fato) é que vai levar o Oscar. Feita em stop-motion, com simplicidade de traços mas imensa sensibilidade para a eficácia deles, a animação do diretor Claude Barras conta a história de Ícaro – que prefere ser chamado de Abobrinha –, um menino de 9 anos, terrivelmente solitário, que é mandado para um abrigo de órfãos quando sua mãe alcoólatra morre em um acidente doméstico. As crianças que Abobrinha encontra lá têm passados tão infelizes quanto o dele; perderam-se, ou foram enjeitadas, ou retiradas de pais drogados ou violentos. E, sim, Minha Vida de Abobrinha é um filme para crianças: os assuntos difíceis são tratados sem disfarces, mas também sem exageros de dramatização nem sensacionalismo, porque são vistos pelos olhos dos pequenos personagens e descritos com as palavras deles.
O mérito é em boa parte do roteiro de Céline Sciamma, que escreveu e dirigiu Tomboy e Garotas, dois filmes excelentes sobre infância e adolescência tribuladas. Céline entende (e sabe expressar) como, na ausência de uma família, as crianças instintivamente tentam formar outros laços familiares – com as outras crianças, com os professores e, no caso de Abobrinha, também com o policial afetuoso que o levou para o orfanato, e que sempre vai visitá-lo. Também essa é uma família sujeita a imprevistos e a separações. Mas proporciona, sim, alegria e alguma segurança. Em Um Homem Chamado Ove e em Minha Vida de Abobrinha, a vida pode ser cheia de tristeza e de perda – e nem por isso menos luminosa.
Trailers
UM HOMEM CHAMADO OVE (En Man Som Heter Ove) Suécia, 2015 Direção: Hannes Holm Com Rolf Lassgard, Bahar Pars, Filip Berg, Ida Engvoll, Chatarina Larsson Distribuição: Califórnia |
MINHA VIDA DE ABOBRINHA (Ma Vie de Courgette) França/Suíça, 2016 Direção: Claude Barras Distribuição: Califórnia |