“Pantera Negra” acerta e erra, mas sempre com estrondo
Com orçamento de US$ 200 milhões, primeira superprodução da Marvel com elenco negro vem disposta a se impor
Pantera Negra é um filme musculoso, feito com sangue nas veias e com o calor da vontade. Nos seus melhores momentos – Danai Gurira, como a general Okoye, voando como um demônio vermelho pelas ruas da coreana Busan –, chega a eletrizar. Em outros, causa certa vergonha alheia. Por exemplo, nas cenas de rituais africanos que parecem show para gringo em Salvador, com aquelas fileiras de figurantes batendo a lança no chão. Ou na imitação de sotaque africano (que não raro termina soando como paródia de sotaque jamaicano) do elenco, todo de língua inglesa. Na maior parte do tempo, contudo, é difícil separar o certo e o errado no filme do diretor Ryan Coogler: eles vêm sempre misturados, quadro a quadro, do começo ao fim. E, de certa maneira, é aí mesmo que está a força de Pantera Negra, na empolgação com que Coogler e seu corroteirista Joe Robert Cole saturam – e às vezes entulham – o filme com todas as ideias, personagens, cores e visuais que conseguem empurrar para dentro dele. Não é todo dia que jovens realizadores negros ganham um orçamento de 200 milhões de dólares (mais do que Thor: Ragnarok ou Homem-Aranha: De Volta ao Lar, menos do que Capitão América: Guerra Civil), e Coogler e Cole se dispuseram a fazer miséria com ele. Acertam bastante, erram muito, e fazem ambas as coisas com estrondo. E, há que se reconhecer, com ousadia também: num lance arriscado, mas que acaba por se provar um trunfo, eles isolam Pantera Negra do restante do universo Marvel e o transformam num mundo à parte. É uma questão central à história, e também à discussão da nova geração de negros americanos “ligados” de hoje – afirmar-se à parte ou integrando-se?
Esse é o dilema do príncipe T’Challa (Chadwick Boseman), que assume o trono da fictícia Wakanda dividido entre manter a doutrina histórica do reino – não se destacar, não se envolver – e assumir um papel mais ativo nas questões dos povos africanos e seus descendentes em outros continentes. Não é que T’Challa procure o dilema; ele simplesmente tromba com ele ao constatar que um mercenário (Andy Serkis), único forasteiro – e ainda por cima branco – a jamais entrar em Wakanda, roubou um lote do ultra-versátil e ultra-resistente metal vibranium. É inevitável que, mais cedo ou mais tarde, outras nações descubram o segredo da riqueza e do avanço tecnológico que Wakanda tão cuidadosamente esconde da curiosidade alheia. Cercada por uma cordilheira que forma uma barreira natural e especialista em se mimetizar em país pobre africano, Wakanda preferiria manter seu estado tecno-utópico assim, oculto. Mas talvez já não seja possível. Na dúvida entre uma política e outra, facções se formam em Wakanda, e a tensão será alimentada pela presença do pragmático agente da CIA Everett Ross (Martin Freeman, sempre um ponto alto) e pela chegada de um novo e temível postulante à coroa (Michael B. Jordan, com quem Ryan Coogler fez Creed – Nascido para Lutar) vindo de Oakland, na Califórnia.
Pantera Negra nunca consegue resolver de maneira satisfatória o paradoxo que herdou dos quadrinhos criados por Stan Lee, de que uma nação tão empenhada no avanço social e tecnológico, e capaz de criar um híbrido tão vibrante de tradição centro-africana e futurismo (o visual da capital de Wakanda, com arranha-céus com telhado de palha, é acachapante, assim como boa parte dos figurinos), calhe de ser regida pelo sistema político mais arcaico e arbitrário possível – uma monarquia absolutista na qual, ainda por cima, as dúvidas de sucessão são resolvidas em combate corpo a corpo com traje folclórico. Fica especialmente complicado diante da extensa lista de ditadores medonhos (alguns com coroa, outros não) que vêm flagelando a África sobretudo desde as guerras coloniais da segunda metade do século 20. Stan Lee ganha algum desconto por ter lançado o Pantera Negra em 1966, quando a lista ainda estava lá pela primeira dezena de nomes; hoje em dia, é um vexame que Wakanda não tenha pelo menos ganhado um Parlamento.
Da mesma forma, Ryan Coogler nunca chega ao melhor termo entre debate e lugar-comum, ou entre cafonice e arrojo – ou ainda entre boas atuações (a maioria) e canastrice constrangedora (com destaque para Angela Bassett, como a mãe de T’Challa, e Forest Whitaker, como o xamã de Wakanda). Mas sua parceria com a diretora de fotografia Rachel Morrison (também de Mudbound, que entra hoje em cartaz por aqui) é uma beleza, e o seu ímpeto como cineasta é inegável. No fim, achei difícil decidir se tinha gostado ou não. Mas, com certeza, pelo menos gostei de ver.
Trailer
PANTERA NEGRA (Black Panther) Estados Unidos, 2017 Direção: Ryan Coogler
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Com Chadwick Boseman, Danai Gurira, Lupita Nyong’o, Michael B. Jordan, Daniel Kaluuya, Letitia Wright, Martin Freeman, Andy Serkis, Winston Duke, Sterling K. Brown, Florence Kasumba, John Kani |