A última temporada de Girls terminou, muito se falou, pouco me interessou: com esforço, cheguei ao meio da terceira temporada, e então desisti. As moças reclamavam demais, e é aborrecidíssimo aquele ar de Lena Dunham de quem se acha a rainha da cocada. Um mérito, porém, não se pode tirar dela: o de ter dado a Adam Driver um papel capaz de fazê-lo acontecer. Ainda que muito mais gente o conheça agora como o Kylo Ren de Star Wars, é também pelos outros papeis que Driver tem feito que ele merece ser observado detidamente. Exemplo em questão: o cativante motorista de ônibus Paterson, que mora na cidade de Paterson, em Nova Jersey, do filme Paterson (não, não estava faltando imaginação ao diretor Jim Jarmusch; a sobreposição tem um propósito). Lançado em um circuito modesto, Paterson vem fazendo ótima carreira nos cinemas brasileiros. Com duas semanas em cartaz, ganhou salas de exibição em vez de perdê-las, que seria o normal. Não é à toa. Eu o vi há quase um mês e continuo pensando nele todos os dias desde então, com carinho e com saudade. Há tempo eu não me afeiçoava tanto a um filme.
Paterson é um filme pequeno, modesto, que celebra a vida também ela pequena e modesta de seu protagonista e da cidade em que ele vive. É nessa aparente mesmice cotidiana, e no que se faz dela, que estão a beleza e o interesse de existir, defende Jim Jarmusch. Na década de 80, quando estourou no cenário independente, Jarmusch era uma espécie de enfant terrible, que construía filmes como Daunbailó e Estranhos no Paraíso em torno de tipos que não se encaixam. Jarmusch era, também, uma destilação do espírito que então se associava a Nova York, do alternativo e do inconformista. Vai ver que é por tudo isso ter virado meio fake, mais pose do que substância, que Jarmusch não se inspira mais em Nova York. Em Flores Partidas, de 2005, ele pôs Bill Murray para cruzar o país em busca de suas ex-amantes. Os Limites do Controle, de 2009 (uma bola fora daquelas na carreira do diretor) se passava na Espanha. O delicioso Amantes Eternos, de 2013, se alternava entre Tânger e Detroit para contar a história de um casal de vampiros já meio enfadados com a imortalidade. Mas inspiração de verdade, para valer, ele encontrou de novo agora, na adormecida Paterson, com suas fábricas antigas de tijolos e suas vielas, e na honestidade e sensibilidade autênticas, sem adornos nem presunção, de Adam Driver.
Ver Driver pela primeira vez, em Girls, foi como ver pela primeira vez Mickey Rourke em Corpos Ardentes, ou Heath Ledger em 10 Coisas que Eu Odeio em Você, ou Charlize Theron em Contrato de Risco: você sente a certeza absoluta de estar diante de um ator especial – um conceito que abrange ser bom ou ótimo ator mas vai bem além, de maneiras intangíveis e indefiníveis. Driver continuou a confirmar essa impressão em seu papel recorrente em Girls e nos filmes que fez desde então. Pelo jeito, tem muito mais gente que o considera especial, porque há uma fila de diretores interessados em trabalhar com ele – só para ficar em uma pequena parte da lista, Noah Baumbach em Frances Ha e em Enquanto Somos Jovens; Clint Eastwood em J. Edgar; Steven Spielberg em Lincoln; Martin Scorsese em Silêncio; Steven Soderbergh em Logan Lucky (ainda inédito); e até Sylvester Stallone em Tough As They Come, que está para entrar em produção. Além de J.J. Abrams em Star Wars, claro.
Driver está memorável em todos esses filmes. Mas talvez ninguém, até aqui, tenha tirado tão bom partido dessa honestidade verdadeira dele, e de sua curiosidade como ator, quanto Jim Jarmusch. Em Paterson, o protagonista é casado com uma mulher que adora. Toda manhã, vai a pé até a garagem municipal, dirige seu ônibus durante as horas seguintes, entreouve com atenção as histórias dos passageiros. Volta a pé para casa, janta e agradece à mulher pelo jantar, pega seu buldogue e vai com ele até o mesmo bar de sempre, para tomar uma única caneca de cerveja e ouvir a prosa dos frequentadores. Paterson ouve bem mais do que fala – e escreve poesia, à mão, num caderno.
Os poemas, na verdade de autoria do poeta contemporâneo americano Ron Padgett, são lindos: enxutos e limpos, de uma simplicidade quase espartana, eles comemoram coisas como caixas de fósforo, ou as moléculas que se deslocam com a passagem do ônibus. Na sua capacidade de reduzir as coisas à essência, e então se deslumbrar com o significado imenso que elas contêm, soam verdadeiramente como criação do personagem. Ou mesmo do ator que sabe tão bem quem é esse sujeito que ele está interpretando: assistindo a um TED Talk (excelente, por sinal) de Driver no YouTube (procure por “My Journey from Marine to Actor”), fiquei sabendo que ele se alistou aos 17 anos, logo depois do 11 de Setembro, nos Fuzileiros Navais e serviu durante vários anos.
Quando estava para ser mandado para o Iraque, Driver sofreu um acidente grave e foi tirado dos quadros. Ficou desolado, e teve imensa dificuldade em se adaptar à vida civil e ao curso de teatro na Juilliard School, em Nova York, com aqueles exercícios tipo “imagine que você está fazendo seu próprio parto”. Tudo na vida militar, explica ele na palestra, tem uma razão e uma função, do jeito de amarrar o cadarço da bota à rotina do treinamento. Conseguir reencontrar um senso de comunidade e um propósito, diz ele, foi duro – mas indispensável, por ser questão de sobrevivência psicológica. Pode ser, então, que esteja aí o que me faz achar Driver um ator especial – a sensação de que tudo que ele atribui a um personagem é por um motivo, e pela necessidade de achar nele um sentido. Em Paterson, não fica dúvida de que essa sinceridade e essa delicadeza são genuínas.
P.S.: Recomendo muito ver Driver em excelentes desempenhos como coadjuvante em Tracks, Sete Dias Sem Fim e Destino Especial, todos filmes que valem a pena.
Trailer
PATERSON (Estados Unidos/França/Alemanha, 2016) Direção: Jim Jarmusch Com Adam Driver, Golshifteh Farahani, Barry Shabaka Henley, Sterling Jerins, Masatoshi Nagase Distribuição: Fenix |