As grandes corporações adoram falar na “cultura” delas – seu jeito particular de fazer as coisas para assim incentivar as qualidades que as destacam. No caso da Apple, essas qualidades seriam o arrojo, a busca pelo perfeito e pelo único, a capacidade de criar produtos que imediatamente se tornam objetos de desejo porque não há nada na concorrência que sequer se compare a eles. Pois no serviço Apple TV+, lançado no último dia 1º de novembro, disso tudo só sobrou a arrogância de achar que, por ser Apple e ter custado caro, automaticamente vai ser melhor: das quatro séries para gente grande (há ainda três infantis e uma de natureza) com que o serviço estreou, não há nenhuma que se salve com alguma honra – sendo que See, com Jason Momoa, está além de qualquer possibilidade de salvação. Em maior ou menor grau, as quatro parecem algo tirado do forno antes de ter assado direito, e o que se vê na tela é um misto de amadorismo, ingenuidade e desconhecimento. Em tempo: só três episódios de cada série foram liberados. Os seguintes vão entrar no ar semanalmente.
Vamos lá, então, da menos ruim à catastrófica:
MEDIANA: “THE MORNING SHOW”
Steve Carell é o apresentador de um jornalístico matinal demitido em desonra, sob acusação de assédio sexual. Jennifer Aniston, sua companheira de bancada há quinze anos, fica segurando várias batatas quentes na mão: tem de lidar com a radiação dessa explosão, tem de convencer a audiência de que não sabia o que se passava debaixo de seu nariz e ainda tem de manobrar uma negociação ruim de contrato. Entra em cena Reese Witherspoon como a repórter que, por ser estourada, nunca conseguiu sair do circuito das emissoras locais de TV. Coisas totalmente previsíveis – e absolutamente implausíveis – acontecem. Mas acontecem len-ta-men-te, porque o roteiro não para de dar voltas em torno de si mesmo. Consta que a série já havia entrado em produção quando o #MeToo estourou e tudo foi reformulado. Em vão: as discussões soam requentadas e não parecem ter um argumento final em vista.. E, com o perdão dos fãs (que são muitos) da Rachel de Friends, acrescento às ressalvas o fato de que Jennifer Aniston parece ter recuperado todos os seus tiques de sitcom. No lado positivo da conta, coloco Reese Witherspoon, que consegue dar alguma forma humana a uma personagem escrita à base de clichês, e Billy Crudup, muito afiado e divertido como o executivo do canal.
Faltou aos produtores assistir a… The Good Wife, que dez anos atrás mostrou tintim por tintim, em 156 episódios na grande maioria irresistíveis, como é que se faz.
VACILANTE: “DICKINSON”
A americana Emily Dickinson (1830-1886) escreveu mais de 1 700 poemas, mas teve menos de uma dúzia deles publicada em vida. A posteridade reconheceu o gênio de suas frases curtas, rimas internas, pontuação idiossincrática e honestidade feroz. Como moça de boa família nos Estados Unidos dos anos 1850, porém, Emily teve uma juventude asfixiante – que esta série com Hailee Steinfeld recria com ambientação de época mas com pegada, diálogos e trilha sonora (muito rap) contemporâneos. A ideia é, sim, interessante. Já a execução – essa denota que o conceito não foi pensado de ponta a ponta, e suas ramificações não foram inteiramente consideradas. Há alguns momentos verdadeiramente interessantes (a maneira como Emily vai concebendo o poema “Because I could not stop for Death / He kindly stopped for me”), mas há muitos outros mais que parecem de série adolescente do CW.
Faltou aos produtores assistir a… a sensacional Gentleman Jack, da HBO, que também trata de uma mulher – uma figura real, como Emily – deslocada no século 18 e prova que não é preciso modernizar à força para caracterizar espíritos à frente de seu tempo.
EQUIVOCADA: “FOR ALL MANKIND”
Uma série sobre a corrida espacial dos anos 60 com Joel Kinnaman? Estou nessa, pensei – até, aos 10 minutos, notar que For All Mankind é daqueles roteiros de “história alternativa”: aqui, os soviéticos chegam à Lua antes da Apollo 11, o que primeiro tira dos trilhos e depois transforma todo o programa americano. O astronauta interpretado por Kinnaman é inventado, mas ele convive na trama com um sem-número de personagens verídicos que se veem obrigados a fazer coisas que nunca fizeram. Estão aqui o célebre diretor de voo Gene Krantz, o chefe de programa Deke Slayton, o gênio da propulsão a jato Wernher von Braun, o astronauta Neil Armstrong – quase todos interpretados por atores assim-assim, dizendo falas chochas e, coitados, indo contra seus prováveis princípios de cientistas sérios ao protagonizar desdobramentos fictícios (e tolos) de eventos reais e assim induzir o espectador ao erro e à confusão. Primeiro, então, há a questão do desserviço histórico. Segundo: o que não faltou na corrida espacial foi drama da mais alta estirpe, e não era preciso inventar mais nada. Terceiro e mais importante: é tudo morno, escrito nas coxas e com aquela cara de produção de segunda linha de série do History.
Faltou aos roteiristas assistir a… Os Eleitos, Apollo 13, From the Earth to the Moon, O Primeiro Homem… Todo mundo já fez melhor.
DESASTROSA: “SEE”
É inacreditável, mas See é de Steven Knight, o criador/roteirista/supervisor da soberba Peaky Blinders. Não faço a menor ideia do que Knight terá tomado, nem do que passava pela cabeça de quem aprovou o piloto desta fantasia com Jason Momoa mais as ótimas (em outras situações) Alfre Woodard e Hera Hilmar. O fato é que See se parece com um Vikings que perdeu o caminho de casa e despencou do barranco (a pretensão era se parecer de alguma forma com Game of Thrones – mas nem de brincadeira). No século 21, um vírus roubou a visão a quase toda a humanidade. Passados vários séculos, o sentido da visão se tornou um mito classificado como bruxaria; a civilização regrediu a sistemas tribais e caminhas às cegas (não resisti). E então a mulher de Momoa dá à luz um casal de gêmeos que enxerga muito bem, e é preciso escondê-los dos caçadores de bruxas. Os três primeiros episódios não sabem se vêm ou se vão; a concepção visual é espalhafatosa mas curiosamente banal; os diálogos são vazios e repetitivos – e nada, mas nada mesmo, empolga. O aspecto mais decepcionante, porém, é que nada na maneira como See é filmada recria a sensação de um mundo envolto na cegueira. E o que é essa gafe do “Skol, Skol! Ó o latão Skol”????
Faltou aos produtores… parar de pensar em Game of Thrones, que é um patamar inatingível para See. Eu recomendaria que eles assistissem antes de tudo a A Bruxa, um exemplo impecável de como, sem necessidade de inventar muita moda, mergulhar o espectador em um mundo estranho e assustador.