Um bom filme sobre uma reportagem extraordinária.
Desde segunda-feira, o dia em que assisti a Spotlight, comecei a contabilizar as referências cotidianas – comentários de amigos, piadas em talk-shows, diálogos em séries de TV ou filmes – sobre padres pedófilos. Parei lá pela décima, porque o ponto que eu queria provar para mim mesma estava mais do que provado: a matéria que o Boston Globe publicou em 6 de janeiro de 2002 sobre o assunto é possivelmente a reportagem mais influente do século até aqui.
À história: havia anos, chegavam ao jornal denúncias sobre casos de padres que praticavam abuso sexual contra crianças na região de Boston. Em geral, o Boston Globe apurava o que havia para apurar, publicava alguma coisa, seguia a vida. Na resenha do filme que Otávio Frias Filho publicou esta semana na Ilustrada, ele menciona o “buraco negro” que existe em toda redação, e tomo a liberdade de citá-lo aqui porque essa me parece a melhor descrição possível para aquela confluência de falta de tempo, de recursos e de visão ou reflexão que é inevitável na pressão do jornalismo diário, e que faz com que às vezes sejam ignorados os sinais de que há ali uma pauta à espera de ser apurada. No caso do Boston Globe, muitos desses sinais foram ignorados no correr dos anos. Até que o jornal foi vendido a outro grupo, ganhou um novo diretor de redação, e algo mudou.
Martin Baron, que no filme é interpretado por Liev Schreiber com a sua excelência característica, nunca havia sequer visitado Boston antes de assumir a direção do jornal. Era também judeu. Ou seja, Baron tinha os fatos sobre Boston, mas não a experiência da interferência da Igreja católica no dia a dia da cidade. Regiões inteiras de Boston são redutos de origem irlandesa, católicos na formação (se não na prática) até a medula; os padres têm imensa influência na vida cotidiana dos seus paroquianos; a Igreja está entremeada em todas as esferas do poder – tanto que Baron foi obrigado a cumprir o ritual de apresentar-se ao cardeal da cidade, Bernard Law (Len Cariou), ao começar no novo emprego, o que rende uma cena soberba no filme. O que essa falta de intimidade com Boston significa é que, quando mais uma denúncia apareceu, Baron achou que o jornal tinha de ir atrás dela. Mais: resolveu confiá-la à equipe chamada Spotlight, ou “holofote”, dedicada a investigações de longo prazo.
O diretor Tom McCarthy (cujo crédito mais expressivo até aqui era O Visitante, um filme ótimo, mas bem pequeno) detalha com muita habilidade esse contexto, porque ele é essencial para que se entendam as circunstâncias em que o time Spotlight – formado por Mark Ruffalo, Michael Keaton, Rachel McAdams e Brian d’Arcy James – trabalhou. Primeiro, vencendo a própria resistência: eram todos nascidos e criados em Boston, todos católicos. Depois, vencendo a desconfiança de outros profissionais-chave do jornal, como Ben Bradlee Jr. (John Slattery). Tiveram de vencer a própria relutância, também, em achar que seria possível bater de frente com a Igreja.
Finalmente, à medida que os fatos começaram a vir à tona e os padres suspeitos foram de um para três, daí para treze, e logo para setenta (a conta terminaria em quase trezentos), foi preciso vencer a própria incredulidade, a indignação, a repugnância: a parte central e decisiva da reportagem que o Globe publicou em 6 de janeiro de 2002, e à qual deu seguimento com centenas de outras reportagens, não está nesse segredo de polichinelo que é a existência de padres pedófilos. O assombroso está na maneira como ela prova que a Igreja abafava cuidadosamente todos os casos com assessoria jurídica de primeira e ia remanejando regularmente os padres criminosos de paróquia em paróquia. O que, claro, significa que eles tinham a oportunidade de fazer dezenas de novas vítimas a cada remanejamento. Isso não é só acobertar; é patrocinar.
E chego à razão pela qual também eu dediquei tanto espaço aqui ao contexto em que a equipe trabalhou e aos resultados do seu trabalho. O elenco de Spotlight é todo ele excelente, sem exceção. Mas vale mencionar ainda Stanley Tucci, como o advogado das vítimas, e Michael Cyril Creighton, estelar como uma vítima que se torna fonte da personagem de Rachel McAdams. O diretor Tom McCarthy (também co-autor do roteiro) é extremamente habilidoso na forma de crescendo que ele dá à exposição de tanta informação, e recria com muito gosto também o ambiente da redação e as minúcias do trabalho de reportagem – ir bater em portas de desconhecidos, cativar fontes relutantes, lidar com fontes hostis, passar horas, dias ou semanas em pesquisas aborrecidas mas necessárias. No saldo geral, o filme é muito bom. Mas não é extraordinário ou, como se tem dito, o melhor filme sobre uma investigação jornalística desde Todos os Homens do Presidente (1976). O caso é que o jornalismo que o filme mostra é de tal qualidade e tal arrojo que a primeira reação (a minha também) ao ver Spotlight é borrar a fronteira entre as duas coisas – entre o que o filme mostra e o que o filme é.
Não se trata de menosprezar os méritos do filme, que são vários e nítidos. E não se trata também de praticar aquele esporte besta de vir com um “é bom, mas aquele filme ali que eu vi trinta anos era muito melhor”. Trata-se de colocar as conquistas de Spotlight em perspectiva: no cômputo final, falta ao diretor Tom McCarthy algo que eu descreveria como tração: a capacidade de concentrar tensão e potência em certos momentos decisivos, de forma que o espectador sinta na pele a trepidação que os protagonistas estão experimentando. Um exemplo do que quero dizer? Assista a O Informante, de Michael Mann, com Russell Crowe e Al Pacino. Mas não deixe de ver também Spotlight, porque ele merece.
Trailer
SPOTLIGHT– SEGREDOS REVELADOS
Continua após a publicidade(Spotlight)Estados Unidos, 2015Direção: Tom McCarthyCom Mark Ruffalo, Michael Keaton, Rachel McAdams, John Slattery, Liev Schreiber, Stanley Tucci, Brian d’Arcy James, Jamey Sheridan, Neal Huff, Billy Crudup, Len Cariou, Brian ChamberlainContinua após a publicidadeDistribuição: Sony