Primeiro, por motivos autoexplicativos, aumentou de forma meteórica nas plataformas de streaming a procura por Contágio, que Steven Soderbergh rodou na esteira da epidemia de H1N1 de 2009-2010. Com excelente consultoria científica e bastante conhecimento da natureza humana, Soderbergh detalha em seu thriller não só a trilha percorrida por um vírus novo, como segue a resposta dos serviços de saúde, o pânico popular e a desinformação incitada por negacionistas e/ou aproveitadores. Agora, no Brasil, é um livro de 1995 que começa a galgar novamente as listas de mais vendidos: Ensaio sobre a Cegueira, do português José Saramago, transformado em filme por Fernando Meirelles em 2008, trata de uma cegueira branca que se alastra sem explicação e sem que as débeis tentativas dos governos de contê-la tenham sucesso; só uma mulher preserva a visão — tornando-se, assim, testemunha da barbárie, ganância e violência que se instauram.
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Se Contágio atende a um anseio por informação, o alegórico Ensaio sobre a Cegueira se conecta a outro tipo de angústia: a sensação de que os cenários de fim de mundo imaginados pela ficção contêm um grão ou mais de profecia, e talvez esta então seja a geração que há de ver a civilização deitada em escombros. Que fique claro que, apesar de sua imensa gravidade, da terrível perda de vidas e de seu potencial para pôr a economia global de joelhos por algum tempo, a pandemia de Covid-19 não é em nenhuma hipótese um evento de aniquilação. Mas é, sim, um evento de magnitude suficiente para que o temor atávico de nossa destruição coletiva aflore à superfície das emoções duramente testadas pelo distanciamento, pela apreensão financeira, pela fluidez das informações, pelos números aterrorizantes que países como China, Itália, Espanha e Estados Unidos vêm produzindo — e pelas cenas nunca antes vistas de todas as nossas cidades desertas, como se estivessem inabitadas e fossem portanto um monumento a algo que já se foi.
O medo de um fim dos tempos acompanha a humanidade desde seus primórdios e é em boa parte alimentado pela transitoriedade mesmo da vida: se cada um de nós teve um começo e terá um fim, em algum recôndito de nossa imaginação parece consoante que também a construção humana maior venha a seguir esses estágios. Mas essa paisagem, a da cidade vazia, é o item que, embora não seja inédito, se tornou quase que onipresente na ficção pós-apocalíptica feita no cinema e na TV nos últimos quinze ou vinte anos: em um mundo extraordinariamente populado, acelerado e interligado como o deste século, nada representa melhor do que ela o cessar da vida em filmes como Extermínio (2002), A Estrada (2009) e o próprio Ensaio sobre a Cegueira. Os pavores típicos da atualidade — a devastação ambiental, a manipulação biológica, os desníveis desastrosos entre as partes ricas e as partes miseráveis do planeta, o desmonte de ecossistemas culturais pela globalização — se manifestam também em uma proliferação desse tipo de ficção. Nenhuma criação a reformulou de maneira tão completa, porém, quanto a série The Walking Dead: embora ela tenha decaído muito como dramaturgia desde sua estreia, em 2010, seu início desenhou um panorama assustadoramente pormenorizado e contundente da sobrevivência a um apocalipse zumbi, e legou uma imagem indelével — a que está estampada na primeira página desta reportagem e mostra o xerife Rick Grimes entrando, a cavalo, em uma Atlanta abandonada à morte.
Pode-se dizer, no entanto, que The Walking Dead apenas catalisou ansiedades que já estavam se materializando, e que agora frutificam em filmes como Um Lugar Silencioso (cuja continuação, prestes a estrear, teve de ser adiada em razão da Covid-19), Ao Cair da Noite, O Último Suspiro e incontáveis outros, além de numerosas séries, desde as derivações de TWD (mais uma delas, TWD: World Beyond, deve estrear no canal AMC ainda neste ano) até a vertiginosa Years and Years e a ainda em produção The Last of Us, que se passa em um futuro pós-pandêmico e está sendo adaptada de um game pelo criador da também ela apocalíptica (e tristemente verídica) Chernobyl. Outra invenção do século XX contribui para a intensificação desses sentimentos: o reconhecimento da adolescência como uma fase de tumulto incomparável desembocou nos últimos anos na vertente das distopias para “jovens adultos” como Jogos Vorazes, que falam não só às inquietações gerais como às angústias específicas de pessoas que estão naquele momento em que qualquer dissabor é sentido como se fosse o fim do mundo.
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Por motivos às vezes intangíveis, algumas gerações são marcadas por um sentimento apocalíptico mais agudo que outras. Na Palestina ocupada pelos romanos, os profetas do fim dos tempos eram uma infestação. Um deles avançou tanto na ideia de redenção e de equiparação entre homens e mulheres, pobres e ricos e gentios e judeus que, pela subversão, recebeu a morte mais indigna que se podia dar a alguém — a morte sem sepultura da crucificação. Dez séculos depois, mergulhada no obscurantismo da Idade Média, a Europa cristã temeu pelo fim da humanidade na virada para o ano 1000, e atravessou vários dos séculos seguintes sob o pavor de que a peste negra fosse seu castigo divino — e, de novo, aguardamos o caos tecnológico na passagem para o ano 2000. Quase todas as culturas e religiões têm uma versão do apocalipse, em um indício de que não há grupo humano que em algum momento não tenha temido por sua falência e elaborado esse medo de forma simbólica.
Não é possível, é claro, calcular quanto cada sociedade ou época se fixou na ideia da aniquilação — mas é provável que o último século e tanto figure entre os mais receosos de todos esses períodos. Principiando com a Grande Guerra de 1914-1918 e seguindo com a II Guerra de 1939-1945, o Holocausto, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, as revoluções comunistas de 1917 na Rússia e de 1949 na China, a ameaça nuclear da Guerra Fria, as grandes fomes africanas e asiáticas dos anos 60 em diante, a Guerra do Vietnã, a crise do petróleo, a explosão dos conflitos no Oriente Médio e a primeira onda do terrorismo, o desastre de Chernobyl, a epidemia de aids, o massacre de Ruanda, os atentados do 11 de Setembro, os tsunamis da Indonésia e do Japão e a escalada do clima extremo, estas onze últimas décadas foram as primeiras verdadeiramente globais da história humana, em que os efeitos de cada evento foram sempre sentidos muito além de seu ponto de origem — e cada vez mais rápido. Não menos importante: pela primeira vez na história da civilização, as imagens desses eventos estiveram ao acesso de todos, divulgadas e retrabalhadas ao infinito. Nunca, enfim, a humanidade conviveu tão de perto com os testemunhos da destruição — e da própria capacidade de destruir.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681
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