Olá! Aqui é a Piti Koshimura e, com muito prazer, começo a compartilhar diariamente neste espaço histórias e visões sobre Tóquio. Moro na capital japonesa há mais de dois anos, depois de sucessivas imersões no país desde 2013. Ao longo do período dos Jogos Olímpicos, vocês vão encontrar por aqui meus devaneios sobre aspectos culturais ligados ao evento e ao dia a dia na megalópole, com passeios pela arquitetura, urbanismo, gastronomia e arte.
É quase impossível imaginar uma Tóquio suja e mal-cheirosa, com um sistema de saneamento básico precário — uma realidade, acreditem, de não muito tempo atrás. Em 1959, quando foi escolhida como sede dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos que seriam realizados dali a cinco anos, menos de um quarto das 23 municipalidades que compõem a área mais central da megalópole tinham acesso ao sistema de descarga e esgoto. Robert Whiting, jornalista e autor de Tokyo Underworld, é impiedoso: Tóquio, com uma população de mais de 10 milhões de habitantes, “era a megalópole mais primitiva – e fétida – do mundo”. Alinhado a uma intensa corrida tecnológica, foi colocado em prática um ousado plano de desenvolvimento urbano para que o Japão não fizesse feio diante dos estrangeiros. E mais do que erguer arenas suntuosas e colocar para funcionar o shinkansen, o primeiro trem-bala do mundo, os Jogos de 1964 acabaram assumindo o papel de catalisadores de grandes transformações na megalópole.
Passados menos de 20 anos após o final da Segunda Guerra Mundial, com um saldo de 3 milhões de mortos, duas bombas atômicas e cidades reduzidas a ruínas, o Japão se propôs a sediar um evento que reuniria mais de 5.000 atletas de 93 países, além de algumas dezenas de milhares de espectadores de fora do país. Fazendo dos Jogos uma vitrine não só de sua reconstrução, mas também de sua modernização e poderio tecnológico, os japoneses criaram uma forma de passar o recado em alto nível.
Os Jogos de 1964 foram os primeiros a serem transmitidos ao vivo via satélite, garantindo com que pelo menos um terço do mundo estivesse de olho no país. Ocupando o centro das atenções, Tóquio aproveitou para esbanjar. Além de introduzir novidades tecnológicas nas competições como a captura de imagens da chegada dos corredores, possibilitando a contagem de centésimos de segundos, o evento também ficou marcado como o primeiro a ter os resultados registrados em computadores.
O processo de modernização também se expandiu para o plano urbano, trazendo mudanças monumentais. Além do trem-bala, foram inaugurados a linha de metrô Hibiya e o Tokyo Monorail, um monotrilho suspenso que conecta o aeroporto de Haneda à região central da metrópole. Com os olhos (e bolsos) voltados ao shinkansen, porém, o Monorail acabou sofrendo alterações em relação à ideia original, que era de transportar os passageiros diretamente a um ponto estratégico e conveniente da metrópole, como, por exemplo, os arredores da Estação de Tóquio. Sem verba suficiente para seguir com o plano, a obra terminou na enfadonha Hamamatsucho, uma estação que nem mesmo hoje, passados mais de 50 anos, oferece muita opção para quem desembarca por lá, a não ser tomar um trem ou um táxi para ir a outro lugar. Mas não dá para reclamar: partindo do Aeroporto Internacional de Tóquio, a rota leva 15 minutos e custa pouco menos do equivalente a 5 dólares. De quebra, ainda temos o visual da baía e um gostinho de um projeto futurista que parou no tempo.
Outra obra viária do pacote olímpico que acabou sendo adaptada por conta da limitação de verba foi a Via Expressa Metropolitana de Tóquio. Para desafogar o trânsito da megalópole e sem dinheiro suficiente para investir na compra de terras e desapropriações, o governo optou por construí-la sobre pistas elevadas pela cidade. Partindo de um projeto que começou mais modesto, as vias expressas somam hoje mais de 300 quilômetros espalhados por diversos distritos.
Costumo dizer que é o Minhocão de Tóquio em maior escala, mas tenho minhas dúvidas se o sucessor paulistano não ganha no quesito, digamos, beleza. Suspensa sobre canais, rios e vias terrestres, a obra toquiota tira bastante do charme de marcos da cidade como a ponte Nihonbashi, um ícone desde quando Tóquio ainda era Edo, no século 17.
Com uma construção que se propunha a trazer mais fluidez ao tráfego de carros, esperava-se uma melhor conduta dos motoristas. Em uma de suas reportagens especiais sobre os Jogos Olímpicos em Tóquio, Robert Whiting comenta que autoridades tiveram que convencer os taxistas a maneirar na buzina. Quem diria… Se o silêncio que paira no ar mesmo em vias movimentadas for resultado dessas transformações, só tenho a agradecer a Tóquio 1964.
A primeira edição dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos na megalópole também trouxe um ganho fundamental: uma tremenda melhoria no sistema de saneamento básico, acompanhada de campanhas que pediam pelo fim do xixi nas ruas. Finalmente, em fevereiro de 1964, todas as 23 municipalidades do centro de Tóquio passaram a fazer parte do planejamento urbano de implementação de esgoto.
Tóquio, finalmente, ganharia o status de megalópole limpa e higiênica — essa sim, a que conhecemos dos banheiros públicos tinindo, das descargas automáticas e das cabines que tocam melodias clássicas prontas para abafar qualquer ruído indesejável.
Agradecimento: Roberto Maxwell, pela revisão.
Piti Koshimura mora em Tóquio, é autora do blog e podcast Peach no Japão e curadora da Momonoki, plataforma de cursos sobre o universo japonês. Amante de arquitetura e exploradora de becos escondidos, encontra suas inspirações nos elementos mundanos. (@peachnojapao | @momonoki_jp)