Esquema da Ultrafarma e Fast Shop acende alerta para autoridades
A ação atingiu gente dos dois lados do balcão... além de gestores das empresas, foram presos dois auditores

A Operação Ícaro, desencadeada há pouco mais de uma semana pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP), contra um esquema bilionário de corrupção fiscal que envolveu gigantes do varejo e altos funcionários do Departamento de Fiscalização da Secretaria de Fazenda e Planejamento de São Paulo (Sefaz-SP), acende uma luz vermelha para as autoridades fiscais de outros estados, e, por que não dizer, para a própria Receita Federal brasileira.
O caso em questão, processado pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão aos Delitos Econômicos (Gedec), que alvejou uma trama envolvendo, a princípio, as empresas Ultrafarma e Fast Shop, mostra que um pequeno grupo de auditores, sob o comando de Artur Gomes da Silva Neto, fornecia uma descarada e criminosa “assessoria tributária” às citadas varejistas.
A ação atingiu gente dos dois lados do balcão… além de gestores das empresas, foram presos dois auditores, entre eles Silva Neto, que é – nada mais nada menos – um graduado supervisor (superintendente) da Diretoria de Fiscalização (Difis) da Sefaz-SP, e é visto pela investigação como o principal operador do arranjo delituoso.
Vale ressaltar que, segundo o MPSP, Silva Neto já teria faturado, com suas “consultorias tributárias”, mais de R$ 1 bilhão em propinas. Os promotores descobriram, também, que a mãe do supervisor, Kimio Mizukami da Silva, uma senhorinha de idade avançada e sem quaisquer conhecimentos técnicos no campo tributário, é sócia da empresa Smart Tax, que em 2021 registrava um patrimônio de R$ 411 mil, pulando para incríveis R$ 2 bilhões em 2023. Ao aprofundar as investigações, o MPSP descobriu que Kimio também é sócia de um “banco fake”, em realidade uma fintech de nome Dac Bank, que teve seu capital social (possivelmente fictício) integralizado em R$ 3,4 bilhões.
Para piorar, a Smart Tax tem sua sede registrada na residência do próprio Silva Neto, em Ribeirão Preto. Está praticamente escancarado que tal empresa seria a lavanderia do dinheiro recebido das empresas favorecidas pelo esquema.
O auditor Silva Neto é descrito pelos promotores públicos como um “gênio do crime”, sendo citada sua aprovação, quando jovem, em provas como as do ITA e IME, dois dos mais disputados vestibulares do país. Aí somos obrigados a discordar. Silva Neto pode ter sido um gênio como estudante, contudo, como criminoso, cometeu erros crassos e infantis, como a utilização da mãe como laranja, e o registro da empresa de fachada em seu próprio domicílio…
Teria sido uma escorregada do gênio dos vestibulares ou a certeza da impunidade? Daí, caberia o velho questionamento “Quis custodiet ipsos custodes?” (do Latim “Afinal, quem fiscaliza o fiscal?”).
Esse tipo de situação poderia acontecer em qualquer lugar, menos na Receita. O órgão que tem a missão de fiscalizar e assinalar desvios fiscais em empresas privadas deve ter a capacidade de perceber esses mesmos desvios na conduta de seus próprios integrantes, sob risco de sua missão primordial restar totalmente comprometida.
E, exatamente por isso, a Operação Ícaro acende um alerta geral em relação a esse perigo. Quando fiscais tributários se mancomunam para, em troca de altas somas em dinheiro, favorecer empresas e grupos privados, ocorrem desequilíbrios e distorções nos mercados, onde as empresas que corrompem levam enormes vantagens perante suas concorrentes.
Importante lembrar que, como variação do mesmo tema, temos, nesse mesmo balaio, a figura da “corrupção normativa”, bastante comum no campo da administração tributária, que ocorre quando regras são criadas (ou suprimidas) para desregulamentar ou extinguir o controle da produção e do comércio de certos itens. Nesse campo, em especial, vemos os mercados de cigarros, combustíveis e bebidas, que não por acaso vêm sendo tomados por facções e quadrilhas do crime organizado.
Mas, é relevante também tirarmos algumas lições dos resultados práticos da Operação Ícaro. Uma delas é a necessidade dessas instituições fortalecerem suas corregedorias, criando também setores de “assuntos internos”, para tratar – com investigação e atividade de inteligência preventivas – exclusivamente dos desvios de seus próprios integrantes.
Chefes, e seus adjuntos, das receitas estaduais e federal, assim como fiscais em posição de comando de unidades estratégicas, devem ser objeto de constante escrutínio da inteligência desses órgãos. Cônjuges, ascendentes e descendentes diretos desses servidores devem ter seus bens descortinados e conhecidos, assim como suas atividades devidamente declaradas, para evitar que haja conflitos de interesses dessas atividades com as funções estatais dos funcionários dos órgãos fiscalizadores.
E, finalmente, uma administração fiscal acima de qualquer suspeita – e livre de corrupção – faz muito bem à saúde da economia. Evita-se, desta feita, o crescimento econômico artificial, o desestímulo ao empreendedorismo e a fuga de investimentos estrangeiros. Sem falar da blindagem desses mercados estratégicos contra a criminalidade organizada.