Quando saíram do Palácio da Alvorada, na seca segunda-feira 18 de julho do inverno passado, diplomatas estrangeiros demonstraram preocupação com o rumo da crise política. Faltavam dez semanas para as eleições e haviam acabado de ouvir Jair Bolsonaro falar por meia hora, em comício transmitido ao vivo pela televisão estatal e redes sociais.
Bolsonaro citou as Forças Armadas dezoito vezes, sempre qualificando-as como refratárias ao sistema de votação eletrônica. O voto digital tem um longo histórico sem máculas, mas para o “comandante supremo”, como se identificou, era corruptível, capaz de “tirar voto de um e mandar para outro”.
Um mês antes da eleição, na segunda-feira 29 de agosto, diferentes pesquisas reafirmavam as chances de derrota de Bolsonaro nas urnas. Em Brasília, chefes militares se reuniram para discutir alternativas. O mais inquieto na sala era o comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, patrono de um tragicômico fumacê de blindados diante do Congresso, enquanto parlamentares rejeitavam o “voto impresso” proposto por Bolsonaro. Impaciente, o almirante queria “audácia”. Não conseguiu. Esperou a transição de governo para vazar o desgosto em outro vexame público — foi o único que se recusou a passar o comando ao sucessor escolhido pelo novo governo.
Passaram-se onze meses. Na terça-feira (27), o coronel do Exército Jean Lawand Junior resignou-se à humilhação, durante oito horas seguidas no Congresso. Foi chamado de “covarde” 21 vezes por tentar se desmentir na incitação a um golpe de Estado em mensagens de áudio que enviou a outro coronel, Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro — a coletânea foi revelada pelo editor Robson Bonin, de VEJA. “Deixa eu dizer uma coisa para o senhor, coronel”, desabafou a senadora Eliziane Gama, relatora da comissão de inquérito. “Aqui, o mais besta conseguiu se eleger deputado federal, senador e senadora.”
“Bolsonaro acelerou o metabolismo da anarquia nos quartéis”
No início de dezembro, quando Bolsonaro isolou-se na residência oficial em luto pela derrota, Lawand transbordava ansiedade por “ação”, à margem da hierarquia militar, nos recados ao ajudante de ordens do presidente derrotado: “Cidão, pelo amor de Deus, cara. Ele (Bolsonaro) dê a ordem que o povo tá com ele, cara. Se os caras não cumprir (sic), o problema é deles. Acaba o Exército Brasileiro se esses cara (sic) não cumprir a ordem do comandante supremo. Como é que eu vou aceitar a ordem de um general que não recebeu, que não aceitou ordem do comandante? Pelo amor de Deus, Cidão. Pelo amor de Deus, faz alguma coisa, cara. Convence ele a fazer”.
Comandante de uma mesa e quatro soldados na assessoria do Estado-Maior, Lawand esperava promoção a um posto em Washington. Cid sonhava com o comando da tropa de Operações Especiais, a quartelada a 150 quilômetros de Brasília. Diante do quartel-general do Exército a paisagem estava tomada por um acampamento de bolsonaristas radicais. Nos intervalos do fumacê da churrascada ao ar livre, discursos por intervenção armada, seguidos por reza e coro de hinos militares — Cisne Branco, canção da Marinha, era a preferida.
Situação inusitada, e estranhamente tolerada. O ex-comandante militar do Planalto, general Gustavo Dutra de Menezes, justificou a proteção em audiência parlamentar na semana passada: “O Exército é uma instituição extremamente preocupada com a dignidade humana, com a preservação da vida e com o cumprimento da lei. E nenhuma instituição disse: ‘Esse acampamento é ilegal’”.
O argumento é tosco, mais revela do que oculta. A área do quartel-general é jurisdição militar. O acampamento durou 67 dias até a invasão do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e do Planalto. Nele, o Exército já havia constatado — e registrado em documentos — um ambiente de delitos “como prostituição, porte ilegal de arma de fogo, consumo de drogas”. Ali, planejou-se um atentado a bomba no acesso ao Aeroporto de Brasília, na véspera do Natal. Fracassou por falha no dispositivo acionado.
Bolsonaro acelerou mutações no metabolismo da anarquia nos quartéis, paradoxalmente, fomentada pela elite da caserna bem antes da chegada dele ao Planalto. Esse novo ciclo de fragilização institucional começou com o reembarque da hierarquia militar no devaneio de um autoproclamado papel de “poder moderador” da República. Sem mudanças na formação, na estrutura e nos regulamentos da vida em quartel, as Forças Armadas tendem a continuar patinando na própria ambiguidade, entre crises de sedução autoritária.
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Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848