Numa trapaça da história, a América Latina será um campo de batalha relevante na guerra econômica anunciada por Donald Trump contra a China.
Há nisso uma ponta de ironia, porque a atenção de Trump à região se dá por um viés negativo – a discriminação contra os imigrantes latinos.
Ele esgrimiu com o preconceito e o nacionalismo para atrair eleitores nas áreas industriais dos EUA devastadas pela concorrência com a China, dona do maior exército mundial de mão de obra qualificada e barata – em breve, pode vir a ser ultrapassada pela Indonésia.
Imigração latina e China são temas entrelaçados na agenda da elite de Washington. Representam questão de Estado, consensual para democratas e republicanos.
O tom de estridência na retórica eleitoral sobre esses assuntos é obra de Trump.
Agora, ele tem a legitimidade da vitória no voto popular, no colégio eleitoral, a maioria no Senado, provavelmente também na Câmara, e na Suprema Corte, para definir as novas bases da relação dos EUA com os países latinos, agora transformados em alvo da política de contenção da imigração e da China.
Como disse no discurso da madrugada de quarta-feira (6/11), é um “mandato poderoso” conquistado numa situação política sem precedentes. Não disse, nem precisava, mas só tem quatro anos para fazer o que planeja, porque a a Constituição americana não permite mais de dois mandatos presidenciais a uma mesma pessoa.
O primeiro alvo latino de Trump é o México, com 3,1 mil quilômetros de fronteira. Fechar a “porta” mexicana é o objetivo enunciado durante toda a campanha. Pressupõe isolar os EUA de todos e de tudo que venha do subcontinente latino abaixo do Rio Grande.
Na campanha, Trump ameaçou com uma espécie de bloqueio econômico ao México, a aplicação de tarifas (até 25%) como retaliação à suposta letargia mexicana na contenção das massas de imigrantes pobres em busca de lugar ao sol no sonho americano.
Enquanto Trump esbraveja contra o “veneno” da imigração, o México se consolidava na posição de principal fornecedor dos EUA: aumentou as exportações em 4,6%.
Ocupou parte do espaço perdido pela China, cujas vendas ao mercado americana despencaram 26% no ano passado, em comparação com o ano anterior.
Visto de outra forma, os EUA passaram a depender significativamente do México na rivalidade com a China.
Ironicamente, isso aconteceu por iniciativa de Donald Trump, que arquitetou e assinou em 2016 o acordo comercial EUA-México na tentativa de proteger o mercado americano do assédio das indústrias chinesas.
É difícil imaginar Trump destruindo um dos pilares do programa econômico do seu primeiro governo, que ele considera um grande êxito. Mas, como dizia o escritor George Orwell, política também é uma soma de mentiras, evasivas, loucura, ódio e esquizofrenia. Mais uma vez, deu Trump na cabeça.