
Quando março começou, uma cesta básica de alimentos em São Paulo e no Rio já custava tanto quanto um telefone celular. Ultrapassou 860 reais nas duas capitais, informa o Dieese, órgão independente com acervo de setenta anos de análise do custo da alimentação no país. Esse valor é equivalente ao preço de um smartphone com tecnologia da chinesa Xiaomi.
Há um empobrecimento progressivo dos mais pobres. É eloquente no caso dos paulistanos e cariocas remunerados pelo padrão nacional do salário mínimo de 1 500 reais. Recebem 1 392 reais líquidos, depois do desconto automático para a Previdência Social. Gastam dois terços (835 reais) na compra da quantidade mínima de alimentos necessária à subsistência no mês. Na sobra (557 reais) não cabem aluguel, gás, eletricidade, transporte e consumo.
Comida cara induz à sensação de piora na economia. Nove em dez eleitores, na média das pesquisas, declaram insatisfação com o governo, que não sai do lugar. Lula chegou ao meio do mandato reciclando antigas promessas, e a mais recente é a de “medidas drásticas” para conter o aumento de preços. Ele pode até vestir roupa de vaqueiro, montar cavalo malhado e vaguear num pasto à caça de bois para abate em frigorífico financiado pelo BNDES. Talvez seja útil para a propaganda, mas continuará sendo ineficaz para o bolso das pessoas no balcão do mercado. Tanto quanto têm sido, até agora, as reuniões no Palácio do Planalto para debater “intervenções” do governo nos preços dos alimentos.
O “pobrismo” se tornou matéria-prima eleitoral básica. Não é por acaso que a sobrevivência de mais da metade (53%) dos brasileiros adultos, em idade ativa para trabalhar e com título de eleitor no bolso, esteja dependente do humor, da competência e dos interesses que governam programas sociais do Estado, entre eles Previdência e Bolsa Família. A pobreza política made in Brazil, mostram os dados oficiais, já abrange dois terços dos habitantes de estados como Bahia, Ceará, Pará, Piauí, Maranhão, Acre e Amapá. A produção verde-amarela de pobres soma 90 milhões, o dobro da população da Argentina.
Sem rumo, ruminando ideias do século passado sobre planificação social e econômica, o governo se deixou aprisionar nas tarefas de administração do atraso num país onde, há quatro décadas, períodos de crescimento econômico são breves intervalos entre crises. Lula escolheu se manter limitado à repetição da aposta em arranjos político-eleitorais personalistas, sem compromisso efetivo com o êxito ou a eficácia de políticas públicas. Agora, encara o risco de atravessar uma campanha presidencial — talvez a última na biografia — em clima de recessão econômica, condimentado pela inflação, por juros altos e pelas sequelas do MAGA de Donald Trump. E, sobretudo, com dois terços dos eleitores dizendo nas pesquisas que não veem mérito para renovação do mandato.
“O ‘pobrismo’ se tornou matéria-prima eleitoral básica”
Lula, como o PT, parece não ter compreendido a dimensão da mudança ocorrida sob seus pés nos últimos quarenta anos — a transformação do país com representação política baseada no critério de classes numa sociedade do empreendimento individual, como nota o historiador Alberto Aggio no instigante A Construção da Democracia no Brasil (1985-2025), da Fundação Astrogildo Pereira e Editora Annablume.
“No passado” — escreve — “foi possível vociferar diante de tudo, de todos e das mais difíceis circunstâncias que o projeto político (de Lula e do PT) era, como dizia o ex-deputado petista José Dirceu, ‘governar no Brasil’. Pois era, enfim, simplesmente isso e não construir uma sociedade democrática, justa, solidária, mesmo que não se conseguisse alcançar o poder. Agora, tudo indica que não será mais possível, pelo menos na forma como se pensava.”
Metamorfoses, observa Aggio, fizeram desvanecer identidades num ambiente onde partidos e seus líderes substituíram projetos de modernização nacional pela visão tosca da política como negócio, com prioridade às transações nem sempre transparentes, mas convergentes à garantia de poder numa “partidocracia” patrimonialista e endinheirada. O resultado está num processo polarizado, com portas abertas para formulações autocráticas, no qual a fabricação de pobreza se tornou parte essencial do instrumental político.
Não significa o fim da História, mas a cada dia fica mais claro que mudanças somente serão viáveis se houver consenso mínimo para escapar da armadilha da economia de baixa renda.
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Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935