Jair Bolsonaro ameaça alcançar a perfeição: criou uma realidade paralela à do próprio governo.
Nesse transe, iniciou uma ofensiva contra uma boa iniciativa do Ministério da Saúde e inaugurou um conflito com o Partido Liberal, ao qual se filiou para garantir a candidatura à reeleição.
A Saúde desenvolveu, com êxito, um aplicativo (Conecte SUS) que reúne informações sobre clientes da rede pública de saúde, como dados sobre internações, medicamentos, exames e vacinas. Entre as funções, está um certificado ou passaporte de vacinação no padrão internacional, com código escaneável (QR Code).
A segurança das informações é absolutamente duvidosa, como ocorre em quase todos os bancos de dados estatais. O governo Bolsonaro tem sido rápido para impor sigilo centenário sobre a saúde do presidente e de sua parentela, mas permanece inepto na proteção das informações dos cidadãos. Em confiança, recolhe e armazena dados privados que, pouco depois, são vazados, comercializados nas ruas e na internet, em alguns casos com acesso por assinatura mensal.
O Conecte SUS tem deficiências, sobretudo no abastecimento de dados, decorrentes da anarquia administrativa dominante no ministério, agravada sob o comando do general Eduardo Pazuello, e do coronel da reserva Elcio “Faca na Caveira” Franco.
Ainda assim, foi possível executar uma boa ideia. Bolsonaro poderia estar celebrando essa iniciativa governamental, que pode ser útil para facilitar a vida das pessoas e ajudar no aumento da eficiência do Sistema Único de Saúde. No entanto, prefere a realidade paralela, onde se fantasia em missões salvadoras de “cura” do câncer (Pílulas de fosfoetanolamina), da pandemia (“Kit Covid”), e da democracia (“Voto impresso”).
Na mais recente alternativa da vida real escolheu o próprio governo como vilão. Desqualificou o certificado de vacinação desenvolvido e as vacinas compradas pela Saúde.
“Não há a menor dúvida que eu veto [a exigência do certificado em lei]” — disse ontem à repórter Mariana Haubert, do Poder360. “Quer melhor vacina, comprovada cientificamente, do que a própria contaminação? Quem foi contaminado é dezenas de vezes mais imune do que quem tomou a vacina apenas.”
Essa retórica fundamentalista pode lhe ser útil à agitação nas redes sociais, mas é inócua na governança da pandemia, como já deixaram claro o Congresso, inclusive com a CPI, e o Supremo Tribunal Federal, ao legitimar a autonomia de Estados e Municípios na ausência da coordenação federal.
O comportamento errático do presidente na catástrofe pandêmica tem custado caro ao candidato à reeleição, atestam as pesquisas de avaliação do governo.
Sem vacina, Bolsonaro já foi obrigado a comer na rua em Nova York, teve movimentos limitados em Roma e, provavelmente, não poderá ir à solenidade de posse de André Mendonça no STF, dia 16, do outro lado da praça dos Três Poderes, em Brasília. As regras do tribunal exigem certificado (passaporte) de vacina ou teste específico (RPC) com resultado negativo, o que impediu um dos advogados do clã assistir a um julgamento na semana passada.
Agora, na cruzada contra o passaporte de vacinação, realiza a proeza de entrar em conflito com o PL de Valdemar da Costa Neto, que escolheu para a candidatura à reeleição.
O projeto de lei que regulamenta o certificado do Ministério da Saúde, já aprovado no Senado, talvez seja a mais relevante iniciativa do Partido Liberal no Congresso neste ano. O autor é o líder no Senado, Carlos Portinho, eleito no Rio de Janeiro, base do clã Bolsonaro.
A proposta nasceu de uma necessidade do Itamaraty, que precisa de regulação doméstica para homologar o documento no exterior. É uma rotina mundial, seguida pelo Brasil tempos atrás com o certificado de vacinação contra a febre amarela.
O Centrão viu nisso uma chance para conciliar interesses do Planalto com os dos governadores e prefeitos aflitos com o descontrole federal na crise pandêmica. “O certificado é o melhor antídoto contra o lockdwn”, argumentou o líder do PL, “e nesse aspecto, por mais curioso que seja, eu penso igual o presidente da República.”
Recebeu aprovação unânime do Senado e aguarda votação na Câmara. Mas começou a ser atacado por Bolsonaro, adversário singular do próprio governo.