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Informação e análise

Cartas marcadas

O Senado entregou a crise dos ianomâmis aos parlamentares aliados do garimpo

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h33 - Publicado em 24 fev 2023, 06h00

O Senado criou uma comissão dominada por parlamentares aliados do garimpo para “monitorar” a crise humanitária dos ianomâmis, provocada pela invasão de garimpeiros na terra indígena em Roraima.

Parece piada, mas não é.

Três dos cinco senadores no comitê pertencem à bancada do estado, acossada por suspeitas de envolvimento em ações que, aparentemente, foram decisivas na tragédia indígena.

Francisco (Chico) Rodrigues, do Partido Socialista Brasileiro, ganhou a presidência da comissão. Hiran Gonçalves, do Progressistas, ficou com a relatoria. E Mecias de Jesus, do Republicanos, entrou como membro efetivo.

As vítimas protestam: “É de questionar até onde estão infiltrados na estrutura do Estado brasileiro os representantes dos crimes e interesses dos garimpeiros ilegais”. O Conselho Indígena de Roraima, organização de 260 comunidades Ianomâmi, Macuxi, Wapichana, Taurepang, Ingarikó, Patamona, Wai Wai e Sapará, acrescenta: “Não aceitamos que grupos políticos usem o Senado para atender a interesses escusos”.

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O senador Rodrigues, presidente da comissão, era vice-líder de Jair Bolsonaro, dois anos atrás, quando foi flagrado com dinheiro escondido na cueca durante uma investigação federal sobre desvios de recursos do Ministério da Saúde na pandemia. Mais tarde, destacou-se na lista de acusados de uma CPI estadual por malfeitorias na prestação de serviços sanitários aos ianomâmis. Prejuízo estimado: 20 milhões de reais. Rodrigues nega tudo.

Por trás das cenas trágicas de indígenas famélicos em comunidades exauridas por doenças evitáveis como desnutrição, malária e verminoses, tem-se um vislumbre dos laços de interesses de uma elite empenhada na expansão garimpeira em reservas florestais na Amazônia.

O lobby político ganhou impulso no governo Jair Bolsonaro. Ele prometeu — e cumpriu — não demarcar terras indígenas, em desobediência à Constituição. Na sequência, decidiu estimular o avanço do garimpo.

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Havia um traço biográfico semioculto nessas decisões — sem atenuante para a delinquência. Na adolescência, Bolsonaro assistia ao pai, Percy Geraldo, testar a sorte na lavagem de areia em aluviões paulistas, em busca de ouro e pedras preciosas. Na vida adulta, já na carreira militar, manteve o hábito em incursões no interior da Bahia, mesmo violando as normas do Exército — como mostram os arquivos do Superior Tribunal Militar.

“O Senado entregou a crise dos ianomâmis aos parlamentares aliados do garimpo”

Em Roraima, o apoio a Bolsonaro na expansão das fronteiras para garimpeiros teve peso específico em campanhas como a do ano passado, que permitiu ao deputado federal Hiran Gonçalves se eleger para o Senado. Gonçalves tem opiniões notórias sobre os indígenas: considera-os “empecilhos” e as reservas nacionais, onde vivem, “entraves ao desenvolvimento”. Dr. Hiran, como é conhecido, estreou no Senado como relator da comissão para a crise humanitária ianomâmi.

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Nesse comitê, ele e Rodrigues têm a companhia do senador Mecias, líder do clã Jesus, cuja ascensão na política de Roraima tem sido turbinada pela eficiente máquina eleitoral da Igreja Universal, controladora do partido Republicanos. Elegeu o filho Jhonatan para o quarto mandato de deputado federal numa das campanhas mais caras do país, abastecida com recursos do orçamento secreto (154 milhões de reais) — mecanismo de repasse de recursos, sem transparência, adotado no governo Bolsonaro. Jesus filho tomou posse e, horas depois, trocou o mandato por um cargo vitalício no Tribunal de Contas da União, vinculado ao Congresso.

O clã Jesus domina o distrito de saúde dos ianomâmis, que há tempos está na planilha de loteamento de cargos federais administrada pelo Palácio do Planalto em negociações de votos no Senado e na Câmara.

Saúde indígena é uma das áreas mais cobiçadas em barganhas políticas na Amazônia. Em Roraima, onde sobram denúncias de desvios, o controle dos serviços sanitários aos ianomâmis significa acesso privilegiado a um fluxo de 47 milhões de reais por ano em contratos.

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Não é pouco dinheiro. Equivale a 8% da receita da prefeitura de Boa Vista, onde vivem seis de cada dez habitantes do estado. A atividade garimpeira movimenta a economia subterrânea de Roraima, cuja sobrevivência financeira depende da ajuda permanente de Brasília — 7 de cada 10 reais em circulação têm origem nos cofres da União.

Ao entregar a comissão dos ianomâmis à bancada de Roraima, o Senado meteu-se num labirinto de conflitos de interesses na selva amazônica. É jogo de cartas marcadas.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830

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