
Foi uma segunda-feira atípica na Esplanada dos Ministérios. Naquele 2 de janeiro de 2023, vinte ministros, civis e militares, de Jair Bolsonaro se recusaram a participar da posse dos integrantes do novo governo — exceções foram o chanceler e o comandante da Aeronáutica. Seguiam o exemplo patético do chefe, que abandonara o país a menos de 48 horas do fim do mandato, supostamente para não cumprir o rito republicano de receber o sucessor eleito na Presidência.
Bolsonaro se refugiara em Orlando, na Flórida (EUA), em viagem milionária paga com dinheiro público e mordomias presenteadas por empresários do agronegócio. O telefone avisou sobre uma nova mensagem: “O plano foi complementado com as contribuições de sua equipe. Aguardamos na esperança de que será implementado”, dizia o major-brigadeiro Maurício Pazini Brandão.
Ex-diretor de Defesa e Segurança da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, o engenheiro aeronáutico Brandão conquistara apreço de Bolsonaro no início da pandemia do coronavírus, em 2020. Ele manipulou estudos para refutar a política sanitária de isolamento social, sugerindo que o governo utilizasse a emergência nacional como ponto de virada num projeto de poder — nas suas palavras, para “repensarmos a libertação do Brasil”.
Diante da realidade de um novo governo no Planalto, Brandão apelou à orientação do chefe, agora vizinho do Pateta, ícone da Disney World: “Bom dia. A ‘minha tropa’ (hehehehe) continua com ‘sangue nos olhos’… Desmobilizamos a tropa ou permanecemos em alerta?”. Militantes continuavam acampados em frente aos quartéis nas maiores cidades. A resposta de Bolsonaro ainda não é conhecida.
Dois dias depois, na quarta-feira 4 de janeiro, o ajudante ordens do ex-presidente, Mauro Cid, recebeu em Orlando mensagem do tenente-coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, do Comando Militar Oeste. “Ainda tem algo para acontecer?”, ele quis saber. Cid respondeu com duas mensagens, apagadas em seguida, segundo o rastreamento policial. “Coisa boa ou coisa horrível?”, insistiu Cavaliere. Cid retrucou: “Depende para quem. Para o Brasil é boa”.
“Anatomia mostra que o desenho do golpe frustrado começou na pandemia”
Caravanas estaduais chegavam ao estacionamento de radicais em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília. O presidente do Partido Liberal, Valdemar Costa Neto, alentava os radicais em vídeo nas redes: “Jair Messias Bolsonaro tem nosso crédito, tem nosso apoio, tem um significado incrível para o nosso país, e vai continuar tendo”. No domingo ensolarado de 8 de janeiro, a mulher do coronel Cid viu a invasão organizada das sedes do governo, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. O ajudante de ordens escreveu-lhe: “Se o EB (Exército Brasileiro) sair dos quartéis… é para aderir”. Preso, Cid entregou a documentação do enredo do golpe frustrado em troca de imunidade familiar.
Agora, pela primeira vez, o país deverá assistir ao desfile no banco dos réus de um ex-presidente, 23 oficiais militares e uma dezena de civis graduados sob acusação de crimes contra a Constituição e o regime democrático, e até conspiração para assassinato do presidente, do vice e de um juiz do Supremo Tribunal Federal. A denúncia apresentada pela PGR na última terça-feira, 18, também fornece às Forças Armadas uma base jurídica para punição dos delinquentes fardados.
É o epílogo de um delírio político tropical. A anatomia desse desvario demonstra que o complô começou a ser engendrado no Palácio do Planalto logo no início da pandemia. Desde a primeira semana de março de 2020 estiveram no centro da trama Bolsonaro, os generais da reserva Walter Braga Netto e Augusto Heleno Pereira e os delegados federais Anderson Torres e Alexandre Ramagem — deputado federal pelo PL e candidato derrotado à prefeitura do Rio no ano passado.
Torres, ministro da Justiça, estimulava o chefe no confronto aberto com o Congresso e o Judiciário. E deixava transparecer a interpretação rudimentar da Constituição que se tornara comum no gabinete presidencial: “A função de chefe de Estado está acima dos Três Poderes, como representante público mais elevado do País e principal articulador das vontades da população. A Presidência detém o monopólio do uso legítimo da força…” . Confirmava o escritor angolano José Eduardo Agualusa em leitura cirúrgica da natureza do “bolsonarismo”: “É um talibanismo numa versão tropical e carnavalesca, ou seja, ainda mais ridícula, mas não menos estúpida, violenta e potencialmente destruidora”.
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Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932