Derrotado, presidente argentino decide festejar triunfo que não existiu
Alberto Fernández avança de derrota em derrota sem perder o entusiasmo: diante do fracasso nas urnas, escolheu a ilusão da vitória
O presidente argentino Alberto Fernández avança de derrota em derrota sem perder o entusiasmo: marcou para quarta-feira nas ruas de Buenos Aires a comemoração de um triunfo eleitoral que, simplesmente, não existiu.
Fernández, de 62 anos, advogado criminalista, acostumou-se a recorrer à ilusão da vitória no manejo do Direito Penal. Na política, porém, costuma ser um recurso prévio ao desespero.
Ontem, a aliança que elegeu Fernández perdeu as eleições legislativas por diferença expressiva (9%) que indica o fim de um ciclo de duas décadas no peronismo. Mesmo assim, ele gravou um discurso marcando dia, hora e local para celebrar a vitória.
O peronismo perdeu a maioria simples que detinha no Senado. Eram 41 senadores peronistas, agora a bancada será reduzida a 35. A oposição liderada pelo ex-presidente Mauricio Macri avançou de 15 para 31 senadores.
Na prática, até para aprovar um projeto de lei ordinária, o governo vai precisar negociar com os adversários no Senado, onde a estrela peronista é Cristina Kirchner, vice-presidente de Fernández, para quem a palavra “negociação” sempre foi sinônimo de derrota.
Tendo governado a Argentina, primeiro com o marido Néstor Kirchner, presidente de 2003 a 2007, e, na sequência, elegendo-se sucessora por oito anos, ela é a figura mais poderosa do peronismo. Montou a aliança que deu vitória a Fernández em 2019, assumiu como vice-presidente e presidente do Senado.
Cristina e Fernández mal se falam. Eles instituíram um regime de coabitação no presidencialismo argentino, no qual ela tem poder de demitir ministros, nomear funcionários em áreas-chave do governo e determinar o rumo das políticas econômicas e externa.
Até aqui, Fernández presidia, Cristina governava. A magnitude da derrota eleitoral de ontem deixa o presidente exposto como primeira vítima da implosão eleitoral de uma débil aliança formatada por Kirchner há três anos para elege-lo.
Para ele, presidir a Argentina vai ficar ainda mais complicado. O mapa dos resultados mostra a vice Cristina liderando a ala majoritária no peronismo com menos votos do que possuía, porém, praticamente todos os votos dados ao partido peronista ontem saíram de redutos eleitorais controlados por ela.
Esse quadro, agravado pela resistência em negociar para governar, tende a deixar a Argentina num impasse político que, no mínimo, garante a persistência da grave crise econômica até à eleição presidencial de 2023.
É muito tempo para um país com inflação anual acima de 50%, cinco vezes maior que a brasileira, e pobreza recorde afligindo 46% da população. Mantidas as condições de hoje, em dezembro esgotam-se as reservas cambiais disponíveis.
Para ter fôlego na travessia até 2023, Fernández depende de um acordo com o Fundo Monetário Internacional, demonizado por Cristina porque isso obrigaria o governo, por exemplo, a assumir um plano de redução do déficit fiscal, com que, aparentemente, os peronistas não têm e nem pretendem ter.
Diante da realidade do fracasso nas urnas, Fernández se refugiou na ilusão da vitória. Talvez seja o seu penúltimo recurso.