Trinta e cinco anos atrás, ele entrou numa reunião de fazendeiros em Brasília e saiu aclamado como candidato ruralista para a primeira eleição presidencial depois da ditadura. Procurou um partido, vestiu o figurino de radical de direita e apareceu na televisão montado num cavalo branco, quase sempre gritando: “Nossa bandeira jamais será vermelha”. Mirava o adversário Lula, do Partido dos Trabalhadores, cujo projeto de poder previa “iniciar a construção do socialismo”.
Agora, aos 75 anos de idade, o cirurgião ortopedista Ronaldo Caiado, governador de Goiás, anuncia a pretensão de disputar a Presidência pela segunda vez em três décadas, com ou sem Lula no páreo de 2026. Se vai conseguir, nem ele sabe — faltam 24 meses para a eleição, e em política tempo costuma ser sinônimo de eternidade.
O alarido de Caiado foi recebido com desdém no Palácio do Planalto e no PT, talvez pela memória dos embates de 1989. Ele não passou do primeiro turno, estacionado no décimo lugar com 0,72% do total de votos. Lula foi abatido na rodada final por Fernando Collor, que tomou emprestado o discurso raivoso de Caiado.
O movimento do governador de Goiás, no entanto, já produziu ondas de choque no bloco de direita. Abalou a liderança até então solitária de Jair Bolsonaro na região do Centro-Oeste, a rica base ruralista onde a maioria conservadora deu-lhe seis em cada dez votos nas eleições presidenciais de 2018 e 2022.
Caiado renovou seu estilo de fazer política. Vestiu um modelo de representante da direita moderada e democrática, que usa garfo e faca, em contraponto aos militantes do extremismo. Com ele obteve cinco mandatos na Câmara, um no Senado e o governo goiano, nos últimos seis anos com aprovação de 70% na média das pesquisas. “A gente tem de aprender que na vida a gente erra”, costuma divagar quando alguém o provoca sobre o desbotado radicalismo anticomunista. Neste mês, comandou uma bem-sucedida coalizão eleitoral em seu estado. Elegeu sete de cada dez prefeitos (179 em 246 municípios, dos quais 93 pelo seu partido, União Brasil). Apenas dezessete cidades goianas serão governadas pelo PT e partidos satélites.
“Com garfo e faca, Caiado abateu Bolsonaro no coração do Centro-Oeste”
Ele abateu Bolsonaro num duelo aberto nas urnas da capital e da vizinha Aparecida de Goiânia, depois de tomar-lhe quase toda a bancada federal eleita em 2022. “Onde a polarização foi levada, acabou derrotada”, dizia nos palanques. “Isso não tem espaço em 2026”, repetia. “Se polariza, não aglutina, e se não aglutina, vai ganhar como?” Incomodado com a derrota, Bolsonaro passou a se queixar, paradoxalmente, da veia autoritária do antigo aliado: “Caiado é uma pessoa que, se você desagrada, ele vira seu inimigo”.
Na geografia política brasileira, Goiás se destaca pela tradição de conservadorismo. Ali, Caiado é identidade de uma oligarquia com dois séculos de história. Começou com o fazendeiro Antônio José Caiado, um dos fundadores do Partido Liberal do Império. O PLI durou seis décadas até o golpe militar de 1889, que derivou na República. Desde então, contam-se ao menos duas dezenas de Caiados, entre deputados, senadores e governadores em revezamento no condomínio de poder local.
O estado reluz no mapa da riqueza multiplicada na esteira do desenvolvimento do agronegócio no Centro-Oeste nas últimas quatro décadas. A expansão demográfica e seus reflexos no mercado imobiliário de cidades como Goiânia, Rio Verde e Jataí retratam esse dinamismo. O preço dos imóveis tem aumentado cerca de 20% na capital e pouco mais no interior. Corretores acenam com renda de aluguel somada à valorização de imóvel que pode ultrapassar 30% ao ano, sem paralelo no mercado financeiro.
A economia local tem crescido o dobro da média nacional, cada vez mais dependente das exportações para a China, cliente de mais da metade de tudo que as fazendas goianas produzem. As vendas ao mercado chinês aumentaram 250% nos últimos três anos, passando de 4 bilhões para 14 bilhões de dólares. Goiás se aproxima do Rio Grande do Sul, antiga potência na produção agropecuária. Como celeiro de alimentos, é um caso de sucesso, mas o horizonte sem indústria, inovação e tecnologia já provoca inquietação na elite dirigente.
Caiado pretende ser o porta-estandarte político em 2026 desse universo econômico em expansão, hoje o lado mais moderno e eficiente do capitalismo brasileiro. É legítimo e possível. Vai depender, certamente, da consistência e coerência da proposta que conseguir organizar para a leitura do futuro do país na perspectiva sertaneja do Centro-Oeste.
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Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917