Aos 44 anos de idade, Lula assistiu ao fim do socialismo real. O Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria, caiu uma semana antes do primeiro turno da eleição presidencial de 1989. Era a primeira com voto direto, secreto e universal desde a ditadura. O antigo sindicalista metalúrgico passou à segunda rodada nas urnas com 456 400 votos à frente de Leonel Brizola, lenda do socialismo gaúcho. Mas perdeu a Presidência por mais de 4 milhões de votos para Fernando Collor. Na época, o Partido dos Trabalhadores anunciou que lutaria pela anulação do resultado — “o processo eleitoral democrático precisa ser moralmente inatacável”, argumentou. Desistiu diante da transparência da Justiça Eleitoral.
Agora, aos 78 anos, Lula assiste ao fim do “socialismo do século XXI”. Essa expressão, vale lembrar, foi sugerida pelo sociólogo alemão Heinz Dieterich ao ditador venezuelano Hugo Chávez. Ele usou-a no Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, para propagandear a ideia de que outro socialismo seria possível, desde que construído a partir de Caracas. “Nosso caminho é o socialismo”, disse, “um socialismo com democracia e uma democracia com participação popular.”
Lula apareceu em seguida no palco do ginásio Gigantinho. Contrapôs a ideia de “participação popular” na construção de “pontes” em Brasília entre os mundos dos ricos e dos pobres. Chávez saiu aclamado e Lula, vaiado. Viraram sócios na narrativa ideológica e envelhecida de um contraponto ao imperialismo dos Estados Unidos no continente. Não ressuscitaram o socialismo nem construíram pontes — exceto a de concreto sobre o Rio Orinoco, obra repassada à empreiteira Odebrecht. No entanto, foram bem-sucedidos na recauchutagem do culto à personalidade em seus partidos.
Lula agora se vê atolado nas próprias ambiguidades. Se a ideia de pertencer a dois mundos, lapidada desde os tempos de sindicalismo no ABC paulista, justificou o flerte com o “socialismo do século XXI”, também resultou na associação à maior tragédia da história recente da América do Sul, emoldurada pela destruição política e econômica da Venezuela. Sua diplomacia do espetáculo foi abatida logo no início do governo no campo de batalha dos Estados Unidos com a China, que disputam a hegemonia do novo mundo.
“Atolado nas próprias ambiguidades, Lula é visto como refém do chavismo”
Entre Brasília e Caracas, há quem perceba um viés de sedução autoritária na persistente solidariedade à ditadura comandada por Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, cujo portfólio exibe 15 000 prisões, perseguição, tortura e morte de 230 opositores políticos e obscuras transações com máfias — há três anos, as agências antidrogas dos EUA oferecem recompensa de 15 milhões de dólares (85 milhões de reais) pela captura de Maduro.
Na prática, o argumento empoeirado da luta anti-imperialista induziu Lula e seu partido a relativizar, ou sublimar, a importância da democracia. Ano passado, quando lhe perguntaram sobre a dificuldade do governo e do PT em reconhecer o regime venezuelano como ditadura, ele disse o seguinte: “A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil, desde que o Chávez tomou posse. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Eu gosto de democracia, porque a democracia que me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez”. Seis meses antes, houve uma tentativa de golpe de Estado com invasão das sedes do governo, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal em Brasília.
Surpreendido pelo célere derretimento da cleptocracia chavista, na semana passada permitiu-se até um flerte público com a desgastada tese de que a democracia é apenas um atalho para o poder, e, para mantê-lo, vale tudo — no caso da ditadura chavista, desde controle absoluto do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público e do Conselho Eleitoral, com sucessivas fraudes nas urnas, além de repressão, tortura e assassinato dos adversários políticos. “Não tem nada de grave, nada assustador (na tragicomédia eleitoral venezuelana)”, comentou. “Eu vejo a imprensa brasileira tratando como se fosse a terceira guerra mundial. Não tem nada de anormal, teve uma eleição”, disse, acrescentando: “Estou convencido de que é um processo normal, tranquilo”.
A cleptocracia de Caracas se tornou um ícone no mapa de um pedaço da esquerda latina, carente de ideias novas sobre progresso social e que se deixa seduzir por impulsos autoritários. Nas mesas de Brasília, a 5 000 quilômetros de distância, listam-se as razões de Lula, visto como refém do chavismo. Algumas seriam muito pragmáticas.
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Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904