Poucos políticos têm talento para expressar de forma inteligente o senso comum, enquanto esculpem a própria imagem na autoindulgência. Raros são os que conseguem atravessar o tempo retocando esse retrato clemente diante de plateias cativadas no culto à sua personalidade. Lula se destaca. Como anotou o humorista Millôr Fernandes, é viciado em si mesmo.
O personalismo transparece na condução do governo e, também, no controle remoto do Partido dos Trabalhadores. No Palácio do Planalto e no PT, muitos creem que tudo pode. Listam argumentos: detém o poder sobre o caixa federal; possui a virtude do porta-voz perspicaz e conciliador da massa empobrecida; tem a sorte de candidato sem competidores — ainda visíveis — para a disputa presidencial de 2026; e gerencia uma agenda política nacional fragmentada por interesses oligárquicos regionais, quase sempre divergentes.
Ecoam, no exagero, lenda similar à do “homem fera” de “brilho celeste” que “devora e se veste de constelação” descrito no samba-enredo da Grande Rio para o desfile na Sapucaí. Essa forma de ver, pensar e agir na política tem alto custo porque, quando não exclui, subestima os demais participantes do jogo do poder. Desde o final do ano passado, por exemplo, embala o Planalto numa crescente e nada discreta interferência na disputa pela presidência da Câmara, cujo desfecho só acontecerá daqui a um ano.
É manobra de alto risco, informa o histórico de crises recentes. Em 2005, Lula tentou fazer o sucessor do PT no comando da Câmara. Deu na eleição do “Seu Zito”, o deputado Severino Cavalcanti, expoente do baixo clero na bancada pernambucana do Partido Progressista. Dez anos depois, Dilma Rousseff tentou intervir. Deu Eduardo Cunha, do MDB fluminense — ele acabou preso por corrupção, e ela foi derrubada num impeachment.
Já provoca reação de quem se considera no alvo do Planalto e do PT desde o final do ano passado. É o caso do deputado Arthur Lira, do Progressistas de Alagoas. Ele receia perder o poder consolidado na arbitragem de recursos do Orçamento, via emendas parlamentares. Teme ficar escanteado no controle da própria sucessão e acabar atravessando o último ano na presidência como enfeite de plenário, o que seria um epílogo melancólico para quem escolheu comandar a Câmara no estilo senhor de engenho.
“Aumentaram o custo e os riscos para Lula cooptar a direita e o Centrão”
Lira tem preferência na sucessão por Elmar Nascimento, baiano condutor da bancada do União Brasil. Mostra-se incomodado com o balé de Lula e da corte palaciana com candidatos alternativos, entre eles Marcos Pereira e Antonio Brito. Pereira é vice de Lira, encarna a ascensão dos neopentecostais no Legislativo e chefia o Republicanos, vinculado à Igreja Universal. Brito lidera a bancada de deputados do PSD, pertence à elite política de Salvador e é militante da fração social-filantrópica do catolicismo, congregada na Internacional das Misericórdias.
Lira tem histórico de habilidade na adesão a governos, qualquer governo, coerente com o figurino adotado pela maioria do Congresso, assim resumido pelo deputado Luiz Eduardo “Lula”, de 23 anos e quatro oligarquias pernambucanas no sobrenome (Queiroz Campos da Fonte Albuquerque): “Óculos Ray-Ban, sapato branco e oposição só fica bonito nos outros”. Negociou votos da maioria do Centrão na Câmara para o governo petista em troca de fatias do orçamento, do ministério e de bancos públicos, como a Caixa Econômica e o Banco do Brasil. Minoritário no plenário, Lula topou repetir Jair Bolsonaro e avança na consolidação de um exótico regime de coabitação parlamentarista num sistema de governo presidencialista.
Conflitos são inerentes à geringonça política. No Congresso, porém, desde dezembro percebe-se nos movimentos do governo objetivos muito além da influência na sucessão no comando da Câmara e do Senado. Entende-se que Lula aposta na quebra da espinha dorsal do Centrão e, simultaneamente, na divisão do bloco de partidos de centro-direita empurrando as atuais lideranças para a margem nos processos de decisão. Por isso, Lira fez na semana passada um discurso de vinte minutos dirigido ao governo, cobrando o “cumprimento de acordos” uma dúzia de vezes e repetindo a palavra “não” em três dezenas de frases.
Aumentaram o custo e os riscos da aposta de Lula no Congresso para cooptar partidos da direita e do Centrão. Mas, como no mundo mágico e selvagem do samba-enredo da Grande Rio, deve ficar tudo bem “enquanto a onça não comer a lua”.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879