Eduardo Pazuello apresentou ao país o avatar de Jair Bolsonaro. Descreveu a existência de uma dupla personalidade presidencial.
Haveria, na sua versão, um personagem na dimensão real do Palácio do Planalto. Outro estaria na autoimagem que ele lapida em público e na internet.
Pela descrição do ex-ministro da Saúde, o Bolsonaro real é diferente do Bolsonaro avatar. Um manda, outro não. E ambos nem sempre estão de acordo.
Deu como exemplo, na quarta-feira, o impasse de seis meses em plena pandemia sobre a compra da vacina Coronavac, do Instituto Butantan.
A fundação paulista se associara à empresa Sinovac, da China, e desde julho oferecia o imunizante ao governo federal. Mandou pelo menos três cartas-propostas (em 30 de julho, 18 de agosto e 7 de outubro), mas não recebeu resposta.
Na segunda-feira dia 19 de outubro, o Ministério da Saúde assinou um “protocolo” para compra de 46 milhões de doses.
O então ministro celebrou o acordo em reunião com duas dezenas de governadores. “Foi uma reunião muito exitosa”, recordou Pazuello, “nós estávamos discutindo o nosso Programa Nacional de Imunização e como estávamos fazendo a compra de vacinas”.
Na manhã seguinte, Bolsonaro acordou e leu a seguinte mensagem na sua rede social: “Bom dia, presidente. Exonera Pazuello urgente, ele está sendo cabo eleitoral do [João] Doria. Ministro traíra.”
O presidente digitou uma resposta: “Tudo será esclarecido ainda hoje. NÃO COMPRAREMOS A VACINA DA CHINA.”
Saiu do Palácio da Alvorada, encontrou jornalistas e anunciou: ““Já mandei cancelar [a compra de vacinas do Butantan]. O presidente sou eu. Não abro mão da minha autoridade. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela, a não ser nós. Não sei se o que está envolvido nisso tudo é o preço vultoso que vai se pagar por essa vacina para a China.”
Na CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) perguntou a Pazuello de que forma Bolsonaro havia comunicado ao Ministério da Saúde a decisão de cancelar a compra da vacina do Butantan.
“Nunca comunicou nada disso”, respondeu o ex-ministro.
“Da decisão de que não poderia comprar?”, estranhou o relator da CPI.
“Não, não.”
“Nunca falou?”
“Nunca falou para que eu não comprasse um ai do Butantan”
“Mas ele falou publicamente…” — comentou o senador.
“Ele falou publicamente. Para o ministério ou para mim, nunca…” — insistiu o ex-ministro.
Ninguém na CPI parecia entender. Pazuello, acrescentou: “Aquilo foi apenas uma posição do agente político na internet.”
Não estava claro, ele percebeu. “Vou explicar para o senhor”, disse ao relator da CPI. “Uma postagem na internet não é uma ordem. Uma ordem é uma ordem direta verbal ou por escrito. Nunca foi dada. Nunca!”
Pela descrição de Pazuello, há um presidente e seu avatar. Bolsonaro no Planalto faz uma coisa e Bolsonaro nas redes faz outra. O segundo personagem seria “o agente político”, de acordo com o ex-ministro.
Em julho, quando o Ministério da Saúde recebeu a primeira oferta de vacina do Butantan, o país contava 80 mil mortos. Em outubro, quando o avatar do presidente cancelou compra da “vachina do Doria”, já eram 154 mil. Em janeiro, quando o Bolsonaro real permitiu a compra, somavam-se 214 mil mortos.
Há quem ache que o ex-ministro mentiu na CPI, e assim continuou fazendo na sessão de hoje. Isso só pode ser coisa de quem faz oposição ao avatar político presidencial.
Afinal, Pazuello é general, serve no Estado-Maior, e não cometeria um delito do tipo previsto no capítulo “Da Ética” do Regulamento Disciplinar do Exército, cujo artigo 28 determina no primeiro parágrafo: “Amar a verdade e a responsabilidade como fundamento de dignidade pessoal.”